" Caí no silêncio há vários dias. Quero falar-te
das horas incandescentes que antecedem a noite e
não sei como fazê-lo. Às vezes penso que vou  encontrar-te
na rua mais improvável, que nos sentamos diante do rio e ficamos
a trocar pedaços de coisas subitamente importantes:
a tua solidão, por exemplo. Mas depois,
virando a esquina, todas as esquinas
de todos os dias, esperam-me apenas
as aves que ninguém sabe de
onde partiram. "
Vasco Gato

 

 

NAQUELE FIME ANTIGO

 

O despertador toca com o barulho insuportável da semana que chega, e a manhã de segunda toma Jorge nos braços. Ele não quer levantar, as sombras do domingo ainda estão em seu quarto, e percorrem seus pensamentos com a solidão do tempo que não passa. O sorriso que seu cão lhe oferece é tão precário quanto inútil, ainda que sublime. Ainda no quarto de seu apartamento ele lembra com tristeza o dia de domingo na praia, onde com companhia vazia ele tomou os drinques da melancolia. Os beijos não molharam, o gozo foi tão mecânico que o desejo era só de ir embora. Uma aventura que só deixou o deserto como herança. A alma não tremeu, mas chorou.
A vida não espera, e é preciso vestir a máscara para encarar todos que não viram suas lágrimas solitárias na madrugada. Jorge gosta de silêncio, de coca-cola, de relógio de pulso, de empada de palmito, mansidão e da palavra diáspora. Ele tem alguns medos, mas ele tem esperança, e sabe que desistir é a maior  derrota. Ainda que pareça impossível voltar a sorrir, lutar é imposição. Há dois anos ele reencontrou Marina, uma amiga dos tempos de colégio e do rock. O amor foi inevitável, mesmo que os dois tenham lutado de forma árdua para evitar. A relação foi interrompida por motivos tantos, mas o sentimento continua como uma centelha na floresta seca. Jorge desce de seu apartamento no quinto andar, vai andando pelas ruas olhando para tudo, embora nada veja. Anda por ruas incertas na procura de encontrar Marina, mesmo sabendo com exatidão onde ela está. O amor entrega verdades e ilude com mentiras.

 

 

" Andávamos sem nos procurar,
mas sabendo sempre que andavámos
para nos encontrar"
- Júlio Cortázar -

 

 

Marina desde cedo levantou, deixou seus três filhos na escola e foi trabalhar. Seu esposo sequer a beijou na hora que ela saiu, e o beijo não lembrado não fez falta. A rotina e o desencanto andavam de braços dados. Ela também gosta de coca-cola e silêncio, não usa relógio e adora empada de queijo. No caminho do trabalho, procura encontrar Jorge casualmente nas ruas, mas também sabendo onde ele realmente se encontra. Ama, mas o controle da vida é algo que ela não quer perder. O imponderável e a incerteza fazem ela tremer. A calmaria de sua solidão parece vencer o terremoto de sua alma. Ela não desiste do amor, mas parece ter desistido de amar. Ela lembra do pôr-do-sol e do amanhecer, faz poesias e chora escondido, sorri para as pessoas e escuta uma canção que diz:

 

 

" Quem sabe um dia, por descuido
ou poesia, você goste de ficar "
- Chico Buarque -

 

 

Não fizeram planos, não combinaram o amor, nem decidiram o abandono. A vida uniu e separou, o destino tramou e traiu...
Agoro nos desencontros não desejados, eles quedam de suas próprias alturas. O silêncio é ensurdecedor.
Por casualidade desejada, eles ainda tropeçam no destino. E o encontro faz as pernas tremerem e os lábios implorarem o toque, um beijo como a melhor palavra.

 

" Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca."
- Mia Couto -

 

Eles partem para suas solidões, um melindre que resiste mas não vence, um medo que mora e não habita, uma derrota que não faz ninguém vencedor.
E no fim do filme o que desejam é sair por uma estrada sinuosa numa moto, cantando e sorrindo, exatamente como Isabella Rosseline e Ted Danson fizeram naquele fime antigo.

 

" É o medo, e não a morte,

o contrário da vida."

 

 

Tarcisio Bruno
Enviado por Tarcisio Bruno em 17/04/2024
Reeditado em 17/04/2024
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