De manhã cedo
É de manhã cedo. Parece redundância. Mas não é. É de manhã cedo. Porque pode haver manhã tarde também, tal qual assim sabe João Solteiro. Aliás, por que João Solteiro tem esse apelido, se é casado?
Paradoxo ou tóchico, muito difícil saber. A real é que João Solteiro cumpre dupla sentença: está preso e casado. Preso por porte ilegal de drogas; casado, diz, por amor e muita sorte.
João Solteiro, segundo ele próprio assegura e a opinião geral confirma, faz parte de um enorme contingente de privilegiados: o dos homens feios. O dos que não gastamos horas ao espelho; que cultivamos amizades quase sempre verdadeiras; que economizamos bastante em cosméticos; que somos menos assediados; que somos quase sempre o que somos e estamos por aí, para todo o mundo ver, embora feios. Neste quesito, muito parecidos com João Solteiro.
O lugar onde João Solteiro descobriu-se feio, pela primeira vez, foi na escola. Ao pedir uma borracha emprestada a uma coleguinha de classe, foi-lhe negado o empréstimo, sob o argumento de que João Solteiro não se parecia com Reynaldo Gianecchini, Marlon Brando ou, nem sequer, com o Idris Elba. João Solteiro, porém, não se deixou impressionar pela negativa e opinião, até então, isolada da coleguinha, e precisou de mais provas.
Porque, nessa época, João Solteiro não sabia que era feio. Na opinião de sua mãe, inclusive, sempre foi o homem mais bonito de todo o planeta Terra. Seus irmãos, irmãs e pais viam certo exagero nesse diagnóstico materno; no entanto, não chegavam a contradizê-lo. Daí que João precisou de outras evidências, e teve.
A segunda vez em que João Solteiro descobriu que não é João Gostoso foi, ainda na escola, num baile de máscara, quando uma menina sem máscara e bonita, conforme todos diziam à época, lhe pediu um beijo na bochecha, e João acenou positivamente com o polegar. Então foi preciso tirar a máscara do Homem Aranha para efetuar o beijo, e no caminho houve aquele silêncio mútuo, seguido daquele aparte, por parte da jovenzinha: "Vou ali e volto já". Um "já" que já dura mais de quarenta anos.
Essas duas experiências negativas influenciaram a decisão de João: a de abandonar a escola, ainda não formado. Não intencionalmente, porém, mas impelido por questões de Mercado, foi ser carregador de feira livre e morador do morro da Babilônia, num barracão sem número, como diz o poeta. Até que, naquela manhã cedo, houve aquele acontecimento, os tóchicos no barracão sem número e a prisão de João Solteiro.
A cena, de manhã cedo, mudou a vida de João Solteiro, descobrindo-se finalmente João mais um feio no mundo, longe da escola.