DANÇAR TANGO EM BUENOS AIRES, ANGÉLICA ELISA

A vida, às vezes, é somente isso: uma lista do que perdemos.

“Vuelvo al Sur

Como se vuelve siempre al amor

Vuelvo a vos

Con mi deseo, con mi temor

Llego el Sur

Como un destino del corazón

Soy del Sur

Como los aires del bandoneón...”

Composição de Astor Piazzolla

Aconteceu de tudo em 1968: os estudantes se revoltaram e armaram barricadas em Paris, não para tomar o poder, mas para dele debochar. Outra ordem caduca começara a ser contestada no leste europeu com a “Primavera de Praga”, que os tanques do império soviético sufocaram. Por toda a parte a autoridade viu-se desafiada: em casa, na escola, na cama, no trabalho, nos palácios. Esse mesmo ímpeto varreria a América. Já o Brasil paralisou com os estudantes primeiro nas ruas, depois na cadeia. O regime de exceção trancafiara o país.

O Colégio Estadual Júlio de Castilhos era reconhecido pelos agentes da ditadura militar como uma célula de estudantes comunistas, razão pela qual fora decretado o fechamento do Grêmio Estudantil, o que gerou divisão entre os alunos. Eu, Carlos Cândido, Umberto Guaspari, José Alberto Silva, Licínio Azevedo, Lia Carolina e Ana Barros criamos um

substitutivo àquela Entidade, o CAJU — Centro de Atuação Juliana. Dentre seus membros, eu lá me encontrava com o encargo de redigir o pequeno jornal panfletário que imprimíamos em cópias mimeografadas.

A sala de aula não guardava simetria. Nela quarenta colegiais do segundo ano do Curso Clássico buscavam entender o discurso de seis dos colegas mais exaltados: eu, Cândido, Augusto, José Alberto, Licínio e Lia. Ariel, o mediador, tentava em vão apaziguar os ânimos. As discordâncias entre os polemistas ganharam perfil cada vez mais acirrado. Este era o clima predominante quando ela, soberana, atravessou a extensão da sala de aula. Dispôs alguns livros sobre a mesa. Escolheu um deles, abriu-o e, impassível ao tumulto em razão da contenda política, com a voz cálida e concentrada recitou:

— “Je suis comme le roi d’um pays pluvieux,

Riche, mais impuissant, jeune et pourtant três vieux,

Qui de ses précepteurs méprisant les courbettes,

S’ennuie avec ses chiens comme avec d’autres bêtes

Rien ne peut l’égayer, ni gibier, ni falcon,

Ni son peuple mourant en face du balcon...”

“Sou como um rei sombrio de um país chuvoso,

Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,

Que, desprezando do vassalo a cortesia,

Entre seus cães e os outros bichos se entedia.

Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,

Nem seu povo a morrer defronte do balcão”...

Que poderes possuía a voz que me transportara nos versos do Spleen 3 de Les Fleurs du Mal a Paris de Charles Baudelaire; à Paris que ainda depurava as pedras sob o patíbulo maculadas pelo sangue de Maria Antonieta? Que sentimentos foram aqueles — absurdamente intensos — que invadiram minha alma em mágica e sinistra alquimia?

Angélica, porteña, Mestra em Língua Francesa, trazia nas veias e no porte pequeno o efervescente sangue ancestral das terras hispânicas. Os olhos amendoados, o nariz talhado pelo cinzel do Grande Escultor Universal em dia de sublime inspiração, os lábios carmins dispostos nas faces excessivamente pálidas lembravam as luzes e sombras da Andaluzia. A voz melodiosa contrastava com os sombrios versos do mestre do simbolismo francês. Haveria algo a mais na estampa e na sonoridade da voz de Angélica que me arrebatara com a força de um vendaval? A paixão que não logrei velar? Tal Capitu, Angélica Elisa, olhos de cigana oblíqua e dissimulada, fingira não perceber.

Voltado às passeatas contra a ditadura militar não logrei aprovação por média. Fiquei para a prova final de Francês, na qual 7,5 seria a nota mínima que me alçaria ao terceiro e último ano do Clássico.

Na noite do exame Angélica, pelo perverso prazer em me causar padecimento, ordenou-me que me sentasse na primeira fila. Estendeu-me um Sonho de Valsa e com o sorriso dos mais galhofeiros disse-me, — “Prova-o. Vai te deixar mais calmo!”, ao que de imediato tepliquei, — “Não tanto quanto dançar um tango em Corrientes...”. A turma ficou em suspense. Angélica retomou o tom professoral e taxativo: — “Vocês têm apenas vinte minutos para encerrar a prova!”.

No dia seguite o mural da sala de aula exibia as notas das provas. “Conquistei” os exatos 7,5. Descobri que naquela noite Angelica retornaria a Buenos Aires. Voei pelas escadarias do Colégio. Um táxi havia recém deixado um passageiro. Pedi ao motorista que se aligeirasse, eu tinha apenas 10 minutos para chegar à Rodoviária. Levava nas mãos um ramalhete de Amor-perfeito. O motorista, nostálgico, “filosofou”: — “Ah, o que faz o amor!”. A vontade que eu tive fora a de responder-lhe: — “Amor, porra nenhuma, eu quero é chegar a tempo!”.

Desembarquei no lado oposto ao dos boxes de partida. Desvairado, atravessei a Rua da Conceição. O ônibus da Viação Flecha Bus já engrenara a marcha. Angélica não acreditou no que estava presenciando: o amalucado aluno a agitar uma ramada de Amor-perfeito e clamando:

— Je te recontrerai à la Buenos Aires*...

Pétalas do ramalhete cobriam mansamente as poças de óleo deixadas pelos autobuses...

Quatorze anos após, um advogado e uma mestra, no entardecer de um outono portenho e à mesa do Café Tortoni, erguiam taças de Veuve Clicquot em tributo a Marcel Proust.

Afinal, naquela noite ambos iriam a la recherche du temps perdu.**

*Eu te Reencontrarei em Buenos Aires, Angélica Elisa

**Em Busca do Tempo Perdido — Obra prima de Marcel Proust