Crônicas das ruas de São Paulo - Os cremes de D. Fernanda
Crônicas das ruas de São Paulo - Os cremes de D. Fernanda
Na rua das Palmeiras na Vila Buarque, distrito de Santa Cecília, na cidade de São Paulo, quase em frente ao supermercado Sacolão Saúde, D. Fernanda vende seus produtos, com seu carrinho de supermercado, expondo vários cremes para a pele.
D. Fernanda é uma senhora que aparenta estar vivendo sua sexta década de vida, magra, esbelta e com uma grande facilidade de fazer amigos. Do seu lado, o carrinho anuncia os cremes em suas embalagens. Eles não têm nomes, nas suas embalagens estão escritos qual a matéria prima principal que os originou: sebo de carneiro, veneno de abelhas, veneno de cobra etc.
Os cremes de D. Fernanda são os mais surpreendentes que já vi. No entanto, esses cremes me fazem lembrar dos remédios que as minhas avós, minhas tias-avós e minhas tias faziam e falavam sobre eles em Serrolândia, no semiárido do interior da Bahia. Em contraste com os remédios das farmácias, esses eram chamados remédios do mato ou remédios ‘brabos’.
No carrinho de D. Fernanda esses remédios já estão amansados. Eles não são mais feitos, como no sertão, da matéria prima in natura. São já produzidos, industrializados, postos em tubos com embalagem própria. Contudo, não são encontrados nos supermercados. São únicos no carrinho de D. Fernanda.
Ainda não construí proximidade suficiente com ela para lhe perguntar de onde vem esses cremes, onde são feitos e como eles chegam até seu carrinho. Tenho a impressão de que são feitos por pequenas indústrias e chegam até ela por uma rede de distribuição de ‘quem conhece quem’ (expressão que acabou de ser inventada por mim e que felizmente não precisa ser explicada).
Porém, D. Fernanda e seus cremes escondem e revelam histórias dessa imensa São Paulo que amalgamou tanta gente, que foi palco, abrigo e causa de tantas vivências. Tenho a impressão de que ela ou é paulistana/paulista ou somente paulista. Para quem ainda não sabe a diferença entre esses dois toponímicos, talvez mais próprios para quem vive no estado ou na cidade, paulistano é o paulista que nasceu na cidade de São Paulo e nesse sentido ele é paulistano por ter nascido na cidade e paulista por ter nascido no estado e somente paulista, sem ser paulistano, é quem nasceu no estado em qualquer outra cidade que não é a capital. Isso é um intricamento linguístico e de definições de localização que envolvem conhecimentos geográficos. Por exemplo, o toponímico de Salvador, ensinado em geral nas escolas é que quem é nascido na capital da Bahia é soteropolitano, mas ainda não conheci alguém de Salvador que não se identificasse ou como simplesmente baiano ou como baiano da capital. Há uma distinção entre o baiano da capital e o baiano do interior. E chama-se do interior qualquer pessoa que não nasceu em Salvador ou nas cidades próximas. O baiano do interior também era conhecido como tabaréu, que tem como sinônimo incivilizado, roceiro, ignorante, bobo e por aí vai; deslize de preconceito que também aconteceu com o caipira em São Paulo.
A rua das Palmeiras tem seu nome devido as muitas palmeiras paulistas que havia quando a rua foi aberta. A palmeira paulista é semelhante ao pé de licuri do semiárido baiano, a grande diferença é que em sua variante paulista, a árvore não é arbusto como a palmeira do licuri, ela é uma árvore alta. Mas o coquinho é muito semelhante e tem o mesmo gosto. A rua das Palmeiras é uma rua muito comercial, mas há muitos edifícios de moradia ou edifícios mistos: embaixo, comércio, em cima, apartamentos.
D. Fernanda instalava seu carrinho próximo à entrada do Sacolão Saúde, um supermercado especializado em frutas cultivadas no país ou importadas. Local estratégico para venda, muitos vendedores se postam nas ruas para venderem seus produtos. Alguns têm registro na prefeitura, porém muitos não têm e de maneira corriqueira se veem na emergência de se esconderem da guarda metropolitana, quando ela aparece em missão de impedir o comércio de rua e sequestrar as mercadorias dos vendedores. Não sei se D. Fernanda era registrada ou não. Mas me parece que ela não ficava assustada com receio da passagem da guarda. Há sempre comunicação entre os vendedores, um avisa ao outro que está havendo batida e observo que D. Fernanda tinha lugares para se esconder se tiver que fugir da ronda.
Não sei se algum dia lhe perguntaria sobre questões pertinentes à sua vida: onde nasceu, se trabalhou sempre como vendedora de rua, se está aposentada e passou a vender os produtos na rua para complementar a renda. No entanto, tomo aqui sua figura simpática para pensar em algumas coisas referentes às ruas da Vila Buarque, Santa Cecília ou Campos Elíseos, na cidade de São Paulo. Mulheres que circulam por essas ruas e que encontramos transeuntes, têm histórias de muitas lutas diárias pela sobrevivência e pela vida, não somente a vida própria, porém de toda a sua família e próximos. São mulheres que aprenderam com Atlas a carregar o mundo nas costas e não só a carregá-lo, no entanto, sobretudo, também movê-lo. Na família, são os esteios, a segurança, o amparo, a mão feminina de Deus e o colo para onde todos correm depois do abraço aconchegante. Comporta, em seus seres, a doçura e a braveza para derrubar os obstáculos, as montanhas e, se for preciso se desmontarem para o bem de todos, desmontam-se. Não há nada de sexo frágil nessas mulheres, porém, são a força, a coragem, a vida, o amor e alguns defeitos, porque felizmente não se lhes deu o poder de serem perfeitas.
Por isso que tinha a impressão de que D. Fernanda preenchia um espaço imenso na rua das Palmeiras. A rua não seria a mesma sem ela. Ela é magra, mas a irradiação de sua sabedoria, coragem, amor pelas pessoas, vontade de viver e amor pela cidade faz com que seus raios tenha uma potencialidade brilhante nos passadiços; ela irradia convergência da sua própria vida com o logradouro; as pedras que recobrem o local e as que se erguem dos prédios têm com ela uma familiaridade e emanam alegria com sua presença. Procurem a rua das Palmeiras no mapa e lá todos os elementos do local vão transcender à carta de orientação e vão mostrar essa senhora personificando a vida, a alegria e até mesmo a alma que ligava a todos na dinâmica frenética do ser e estar ou do passar, do parar, demorar um pouco ou muito, do ir-se e do permanecer ali.
A rua das Palmeiras vai da Estação Santa Cecília até a Estação Marechal Deodoro. Passagem pulsante de muitos pés que transportam vida, esperança, a pressa do dia a dia, as preocupações, os desejos, as labutas diárias, as desesperanças, as pequenas vitórias e derrotas.
Do outro lado, o vendedor de mandioca jovem comunica-se constantemente no celular enquanto não para alguém para comprar. Para esse jovem, o mundo é a mandioca, o celular, seu carrinho de mão, a rua das Palmeiras, o metrô, os ônibus, o trem e o caminho para a casa, não sei onde, em São Paulo ou em alguma cidade circunvizinha. E assim são muitos vendedores ambulantes pelos logradouros paulistas.
No entanto, de repente não encontrei mais D. Fernanda vendendo seus cremes nas Palmeiras. Por onde andará D. Fernanda? Foi proibida de vender por falta de uma dessas licenças contra pobre da Prefeitura? Não conseguiu mais a mercadoria por qualquer motivo: aumento exagerado de preço do fornecedor, fechamento de fábricas ou quaisquer outro impedimento? Parou de vender porque decidiu não trabalhar mais por conta de alguma dificuldade ou por ter conseguido algum benefício previdenciário? Nas duas piores hipóteses estaria doente ou teria ido oferecer os cremes para hidratar as asas dos anjos no orum?
Passado um tempo, encontro a senhora na rua D. Veridiana, estava conversando com outra senhora, vendedora de tecidos na calçada. Parei para conversar com D. Fernanda e nesse ínterim obtive uma pista do que estava acontecendo. Ela estava com problemas de saúde, possivelmente sérios. Como soube disso? Passou uma médica vinda da Santa Casa de Misericórdia e ficou um tempinho conversando com ela e, entre outras coisas, perguntou se o remédio estaria fazendo o efeito desejado. A senhora respondeu que o remédio ajudara um pouco, porém, não estava melhorando com a facilidade que pensava antes que aconteceria. A médica disse para voltar ao seu consultório e se despediu.
A última vez que vi D. Fernanda a encontrei na rua Frederico Abranches com um pequeno pacote de compras, andando devagar, sem a alegria costumeira de antes e me disse que estava passando por um período de complicações em sua saúde. Foi um encontro rápido, desejei sucesso no seu tratamento, me agradeceu sem acreditar muito que isso aconteceria e desapareceu na rua Fortunato. Soube por um senhor (que vendia os mesmos tipos de produtos, na rua das Palmeiras também, próximo ao metrô Santa Cecília) que D. Fernanda faleceu.
Pois, a rua das Palmeiras sente falta de uma pessoa que, quando esteve por lá nas suas vendas de cremes, emprestou a extensão de sua alma ao logradouro e a localização preencheu sua riqueza com a presença de D. Fernanda. Ela está agora definitivamente fora da rua das Palmeiras, enquanto determinação autônoma ou enquanto composição de células e organização física em um corpo, porém sua memória fará sempre parte da rua, como outras memórias que a constituíram.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 29 de dezembro de 2023.