A parte que sobra

Há muito tempo eu não me sentia como hoje me vi. Odeio ter que admitir isso, principalmente porque eu não tenho que admitir nada. É como se eu estivesse em ausência de beleza. Tudo sobre mim sempre girou em torno de pressões, especialmente as coisas boas. Talvez eu seja a pessoa requisitada mais descrente dessa condição que existe no mundo. Mas não sou. Não sou nada disso. Percebi que absolutamente nada, às vezes nem da minha própria vida, é sobre mim. Tem dias em que eu me sinto a criatura mais horrorosa que as pessoas poderiam conhecer, não tanto como uma toupeira ( que é o animal mais grotesco do mundo), mas o suficiente pra perceber que essa criança ouviu umas coisas erradas. Eu não acredito nos adjetivos que recebo, e sim naquilo que não recebo. Me sinto poeticamente feia. Objetivamente. Subjetivamente. Concretamente. Abstratamente. Não sei como essa pessoa consegue ter um olhar tão delicado para outro. Não é sempre que eu sou cruel assim, mas — quando sou — não sei ser menos do que isso. Não sei me olhar no espelho e pensar que hoje não é o melhor dia. Queria ouvir uma voz que me falasse que todos os dias são bons. Bons não, excelentes. A voz que me faltou me faz falta hoje. Não tem coisa mais certa do que uma criança que se acha especial e linda, mesmo que a adolescência seja uma fase disruptiva. Na minha fase, a pós-adolescência, isso contaria como algo. Ou não. Não tem como saber.

Enquanto procurava meu remédio-pra-vida-toda, ouvi as surpreendentes palavras de que ele estava em falta. Gelei. Pensei que aquele não poderia ser o meu fim, eu não estava bonita o suficiente pra dar adeus ao meu corpo. Mentira, eu não pensei em nada. E isso não mata. Mas a fome, sim. Estava sem racionar, me encontrava em um estado de letargia que eu não busquei estar. Só me inebrio se for de paixão.

Desci para a outra farmácia, lá tinha. Não me deram uma sacolinha. Todos sabemos que o único motivo para ainda se comprar coisas em lojas físicas é a espera de angariar mais uma sacola para se juntar com as suas semelhantes dentro de uma sacola-mãe que possivelmente se encontra socada em algum armário (para os burgueses que possuem armário). Se tiverem mais de um, meu Deus, chegaríamos ao que se define como paroxismo do sistema capitalista.

Obviamente, não falo sério. Todos somos pobres em níveis diferentes. Até os considerados ricos não são ricos de verdade. Mas vivem bem. E tenho certeza que não ficam esperando por sacolas de plástico, o que é o ideal. Esse é o Brasil que eu quero, Bonner.

Você pode comprar 105 itens, não importa, terá apenas 4 sacolas médias ( com sorte). Que sistema desgraçado.

Mesmo sem armários planejados ( ou sem planejar), hoje eu enlouqueci um pouco. Eu comprei algo que há muito tempo pensava em comprar. Poderia ter sido mais barato? Sempre pode. Eu me arrependi? Agora que estou escrevendo, sim. Amargamente. Vai me servir melhor do que o objeto anterior? Eu espero que sim. Se não, eu forçarei. Mas não foi nada de absurdo. Inclusive, ajudou uma artesã. Eu não dei o dinheiro que não tenho pra uma empresa de chocolates superfaturados, não. Mas se tivesse, eu daria, só pra deixar bem claro.

Não estou muito empolgada pra usá-la. Não imagino como ela ficaria sobre meu ombro, esse ombro que pertence a um corpo que presentemente abriga uma cabeça que diz que sua feiura atual se encontra no centro de seu rosto. Talvez ali esteja minha alma. Eu sinto que meu espírito abriga os meus centros.

Me sinto como as formas de Picasso. Não estou me elogiando. Me vejo em pedaços que não se encaixam. Meu rosto de desintegra enquanto sua forma oscila entre estranho e muito esquisito. Possivelmente ninguém mais concorde com isso, eu espero. Talvez eu seja julgada como alguém querendo atenção. Mas eu quero atenção. Eu vivo só.

E não é isso. Eu, se pudesse, só sairia de casa se estivesse me sentindo bem. Não entendo como posso ter quatro caras: a que eu imagino, a que eu ouço como me veem, a que a câmera captura e a que condiz com a realidade. Eu queria sair de mim para me ver. Talvez eu seja insuportável, mas linda. Ou o contrário.

Me fizeram engolir que eu não posso ser mais de uma coisa. Discordo, é claro. Mas eu discordo como quem diz não com uma faca enfiada na garganta. É sofrido, ninguém escuta e — no final das contas — não serve de nada.

Penso em todas as palavras, piadas, risadas e expressões faciais que eu faço todos os dias. Talvez as pessoas odeiem isso, como durante toda a minha vida, mas se encontram na pós-adolescência que insiste em dizer que é preciso ser gentil. Não sei se sou compreendida. Admirada não por isso que me envolve, mas pelo o que está por trás. Não sei se deveria ser mais riquinha nos trejeitos. Mas não soaria natural. Eu tiro sarro de mim mesma antes que façam isso. Eu mal me mostro, o que veem é o meu humor. Se estou falando sério ou não, só saberá quem estiver prestando muita atenção em mim. Acho que só me acham estranha mesmo. “Doidinha”. E como eu odeio esse termo. Mas é melhor do que “santinha”. Aqui eu não sou santa, mas também não sou outra coisa. Eu me encontro no não lugar da personalidade alguma. E eu tenho de sobra, acho, mas se alguém nota é pra desprezar. Ou ignorar. Acho que prefiro o desprezo.

Engraçado que aqui eu vivo uma quase vida social, mas continuo me sentindo excluída pelos círculos que me envolveram. Não sei se exatamente gostam de mim. Talvez eu desperte uma certa comoção moderada. Talvez não queiram estar tão perto a ponto de me consumirem. Talvez eu esteja louca, mas talvez não. Talvez eu nunca me sinta acolhida por um grupo de pessoas. No lugar de afeto, eu basicamente conheço assédios. Olhares, elogios e interesses não amigáveis. Deve ser bom pra quem aproveita. À parte disso, além de mal concordar com a atenção que eu recebo, ainda reclamo de não ser percebida da forma como gostaria. Simplesmente como uma pessoa querida. Que está ali. Que agrega. Que não se esquece. Que não se fez esforço pra querer bem, pra estar junto. Que não depende de ninguém para ser gostável. Que é porque é.