PASMEM!

A senhora idosa entrou no ônibus, tateou na bolsa cor de vinho seu cartão de gratuidade, impedindo o fluxo normal das pessoas que buscavam o coletivo, demorou alguns segundos na busca e, finalmente, o encontrou para alegria de todos formando fila atrás dela. Andou descontraída até quatro filas de cadeiras antes do local onde eu estava, olhou para ambos os lados, espirrou e limpou o nariz com a costa da mão, retirou o óculos da bolsa, colocou-o no rosto, perscrutou novamente o ambiente e sentou. O transporte seguiu seu caminho naquela lentidão característica dos coletivos, apanhando e desovando passageiros nas paradas ao longo do seu percurso. E a velhinha lá no seu canto, sozinha, de vez em quando espirrando de maneira estrondosa e passando a mão nas narinas sem dar a menor importância se a estavam observando ou não. Não sei qual era o seu destino e nem entendi porque fiquei a observá-la em quase todo o trajeto. É que, realmente não compreendo, ela me pareceu irresistivelmente ingênua e desprovida de graça, franca e complexa, vestida de simplicidade, em suma uma figuraça só encontrada nos livros de escritores como Machado de Assis e Stendhal.

Em determinado momento, parando num dos inúmeros semáforos da cidade, avistei outro ônibus que chegava e fazia a parada obrigatória e usual no sinal vermelho e ali permaneceu paralelo àquele onde nos encontrávamos. Quatro estudantes estavam sentados no coletivo ao lado do nosso, duas garotas e dois jovens, todos adolescentes. De repente, para meu espanto, notei que o garoto ao lado da janela próxima daquela onde estava a velha senhora pegou algo do bolso, fez como que um bola com as duas mãos e, certeiro, jogou a coisa na cabeça da malfadada senhora, que nesse exato momento deitava os olhos sobre um folder de algum supermercado. O lançamento foi impecável e o impacto, como não poderia deixar de ser, atordoou-a momentaneamente. Ela olhou na minha direção com expressão irada, soltando fumaça pelas ventas, pelos olhos e pelos ouvidos. O sinal continuava fechado, os ônibus, paralelos, o pivete ficou de costas para nós e ria a não poder mais acompanhado pelos colegas. Enquanto isso, a mulher me olhava com cara de poucos amigos pensando que tinha sido eu o autor da insultuosa façanha, pasmem! Imediatamente, então, indignado, apontei o verdadeiro culpado com a veemência necessária ao deslinde do problema:

_Foi aquele moleque do ônibus ao lado, minha senhora, foi esse pivete vestido de estudante quem jogou isso na senhora, esse que está de costas.

Ela virou-se para a janela, viu o perfil do rosto debochado do adolescente aberto num largo sorriso de afronta, tomou do mesmo objeto que ele jogara e, com pontaria certeira, arremessou-o de volta, atingindo-o em cheio na nuca. O danado do garoto quase caiu com a força da pancada.

Nesse instante o sinal abriu e os dois ônibus coletivos saíram no mesmo rumo. A mulher idosa agora ria toda feliz com a façanha vingativa. E num súbito momento, quando o danado do adolescente, passando a mão em torno do pescoço, virou-se carrancudo e infeliz porque não esperava reação à sua agressão gratuita, a mulher levantou o braço e estirou o dedo fura-bolo num expressivo gesto obsceno.

Antes que o ônibus que estivera no sinal ao lado do nosso ganhasse distância, ultrapassando-nos, ainda pude ver a cara de espanto que o garoto fez ante a atitude da velha senhora. É evidente que nem todas as senhoras idosas, com cara de boas velhinhas, suportam mansamente ser agredidas de maneira imbecil por um adolescente idiota e deixar tudo por isso mesmo, sem troco.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 05/01/2008
Código do texto: T803403
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