O Lapso
Se fosse possível, logo após a aula do Mestrado, eu iria correndo para o consultório do Dr. Jeremias Halma.
“Quem?”, deve estar se perguntando o raro leitor. Ou pode ser que não. Há um grupo restrito que pode conhecê-lo. Mas antes de informar os desavisados, melhor contar a razão do meu desejo de ir me consultar com esse médico.
No intervalo da mesma aula, uma colega se aproximou de mim. Comentou sobre o que tínhamos acabado de ver. Mudei de assunto meio sem querer.
- Sabe que a aula de quinta-feira vai ser em outra sala, né?
- Sei.
- Você não veio na quinta passada, então pensei que pudesse estar por fora.
- O professor fez chamada?
- Fez.
- E você está aprendendo o assunto da aula dele?
Em tese, sim, eu estou aprendendo. Todos os dias eu leio sobre esse assunto. Há muitas coisas que aprendi. Todavia, a colega me pegou desprevenido mesmo assim. Me pediu a definição do termo que dá nome ao assunto em questão.
- É… tipo… é uma corrente filosófica que… explica a….- respondi. Ou melhor, tentei responder.
Em outras palavras, me enrolei ridiculamente. Um assunto que eu pensei que estava dominando. Veio a colega e destroçou minhas ilusões com uma pergunta básica.
Durante a aula, fiquei refletindo sobre o assunto. E acabei elaborando, para mim mesmo, uma definição correta para o termo que ela me questionou. Eu só precisava refletir um pouco para dar uma boa resposta, mas por que isso não aconteceu na hora?
Penso que tive um lapso no momento em que tentava explicar para a colega. Foi essa conclusão que me levou a lembrar do Dr. Jeremias Halma.
O médico é uma criação do grande escritor Machado de Assis. Ele aparece no conto intitulado “O Lapso”, publicado no livro “Histórias sem Data” (1884). Uma breve sinopse: um homem chamado Tomé Gonçalves - que era “exato em todas as coisas, pontual nas obrigações, severo e até meticuloso” - havia perdido a “noção de pagar”, segundo o diagnóstico do Dr. Jeremias, o que implicava em calotes. Mas o paciente não fazia isso de propósito. “Esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma coisa, varreu-se-lhe da cabeça”.
Em comparação, é possível que o meu suposto lapso seja distinto. Talvez o conceito de qualquer assunto seja varrido da minha cabeça bem na hora que eu precise explicar a alguém. Se for isso, estou ferrado. A carreira acadêmica exige apresentação de seminários e a capacidade de explicar assuntos de forma lógica e coerente.
- A moléstia não é incurável. - me diria o Dr. Jeremias, como disse aos credores de Gonçalves.
Ele, segundo a ficção machadiana, já havia curado um barbeiro, “que perdera a noção de espaço”, e uma “senhora na Catalunha”, “que perdera a noção do marido”. O próximo paciente deveria ser eu, que perco a noção de qualquer assunto quando estou prestes a dissertar sobre ele para qualquer pessoa.
- A cura está na própria faculdade. - me explicaria o Dr. Jeremias.
Ele curou Tomé Gonçalves depois de levá-lo para assistir a compra e venda de mercadorias e para ver a ação de pagar, entre outras coisas. A minha cura seria assistir com mais frequência outros alunos explicando sobre qualquer tema.
Na quinta-feira, a colega não apareceu para a aula de novo. Quando a questionei, ela disse que tinha perdido a noção de sala de aula.