O BUG DO MILÊNIO
O BUG DO MILÊNIO
“A humanidade, que é pouco sensível, não se angustia com o tempo,
porque sempre faz tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em cima.”
Fernando Pessoa.
Vencida a perturbada e mal dormida noite em que me revirei entre os lençóis e edredons amarfanhados em consequência do implacável assalto de fantasmagóricas visões causadas pelas informações veiculadas pelas agências de notícias fidedignas como a Reuters, Associated Press, AFP, EFE, ANSA e DPA de que, segundo os “cientistas da computação”, para dali a exatos duzentos e vinte e um dias haveria de ocorrer o “Bug do Milênio”.
Em meu pesadelo tomei conhecimento do vaticínio destes “tecnocratas do apocalipse”: — todos os sistemas de computação entrariam em colapso provocando desde o descontrole dos widgets — calendário, relógio, agenda e previsão do tempo, disponíveis nos telefones móveis —, às operações de tráfego aéreo, ferroviário, de metrôs, de partidas e de chegadas de aeronaves, até ao desarranjo dos extratos das contas correntes bancárias, das contas de investimentos e de aplicações, à corrupção do painel de pregão das bolsas de valores mundiais.
Consultei meu relógio de pulso, um valioso Eterna Matic automático, o painel de ônix negro, ponteiros em ouro 24k sobre as pequenas incrustações de brilhante que formam os doze primeiros algarismos romanos. Essa relíquia fora o legado material mais precioso deixado por meu pai. Faltavam dez minutos para às doze horas, e o ônibus em que eu viajava acabara de ingressar no pátio da rodoviária de Porto Alegre.
Naquela quarta-feira eu faria uma sustentação oral perante a Banca Examinadora e de Avaliação de Defesa do Instituto de Letras da UFRGS.
Embarquei num dos taxis que se encontravam na saída daquele terminal rodoviário. Aguardávamos o sinal do semáforo que nos permitiria cruzar a Avenida Farrapos. Foi então, exatamente ao meio-dia, que tudo começou...
As luzes das sinaleiras apagaram-se ocasionando o irreversível engarrafamento do trânsito e o coro desenfreado e ensurdecedor de buzinas, sirenes e impropérios de motoristas e transeuntes. Definitivamente a mobilidade urbana entrara em colapso. Paguei o valor indicado no taxímetro e desembarquei. O tumulto que se verificava no cruzamento daquela movimentada avenida se estendera às demais artérias. Bendisse o momento em que eu decidira seguir a pé. Todas as vias mostravam o mesmo e caótico entravamento.
Na primeira agência que encontrei do banco em que mantenho conta decidi prevenir-me com valor em espécie. A balbúrdia no espaço dos caixas-eletrônicos era tanto ou mais da que eu havia verificado nas ruas. O sistema simplesmente encontrava-se inoperante. Em vão os agentes da segurança bancária explicavam que o mesmo ocorria com os caixas físicos. Ao ouvir os gritos de, — “O vencimento das minhas contas da luz e do condomínio é hoje!”, o gerente do estabelecimento que acorrera ao saguão instruía, — “Façam por débito em conta corrente!”. — “Como — replicou uma jovem mulher — se está tudo paralisado?”. A sensação, ao menos para mim, fora a de que todos nós nos encontrávamos numa densa e desconhecida floresta sem saber por onde seguir. A maligna ‘computodependência’ do Milênio Terceiro!
À frente de um grande magazine, os aparelhos de TV mostravam o atônito repórter informando em rede nacional que todos os terminais rodoviários, aeroportos, estações de trem e de metrô mostravam-se inservíveis. Em outra loja de eletrônicos o mesmo repórter informava que a hecatombe cibernética tivera seu início à zero hora da quinta-feira no Japão! — “É óbvio, o fuso horário a tudo explicava!”. O âncora noticiava o “Crash” das bolsas de valores internacionais, do “apagão” e da zeragem dos valores mantidos em conta corrente bancária e dos aplicados em investimentos, e de que todos os procedimentos cirúrgicos robóticos foram bruscamente interrompidos levando a óbito um sem número de pacientes.
Busquei meu relógio de pulso. Eram 12h52m. Meu Eterna Matic não se submetia aos sinais da Internet, não dependia de mais nada que não o movimento de meu pulso. Minha sustentação estava agendada às duas horas da tarde no Campus da Agronomia. Como lograr alcançar em tempo hábil aquele local?...
Não poucos, na esperança de que seus patrimônios não sofressem ainda que apenas virtualmente — quem garantiria? — eventual pulverização valeram-se dos serviços e da intersecção junto a Oxalá, Ogum, Oxóssi, Xangô, Iemanjá, Oxum e Iansã, os Sete Orixás Cósmicos, de uma Yalorixá, conhecida pela suntuosidade megalômana de seus vinte Templos, localizados no Bairro do Lami, dos quais se destaca uma pirâmide de vinte e um metros de altura. Os católicos, por sua vez, acenderam velas e rogaram aos santos de sua devoção que os advogassem perante o Eterno pelo perdão às suas faltas e submeteram-se, ainda, ao suplício de galgar em joelhos os noventa e sete degraus das escadarias do adro da Igreja Nossa Senhora das Dores ou o de percorrer a pé os 30 km que separam o Centro Histórico de Porto Alegre do Santuário do Sagrado Coração de Jesus onde se encontra o tumulo do Padre João Baptista Reus, a quem atribuíam o dom de milagreiro, localizado na cidade de São Leopoldo, desde que suas fortunas se mantivessem incólumes em seus cofres; os judeus, as cabeças devotamente cobertas pela Kipá e os ombros pelo Talit, reuniram-se nas sinagogas em fervorosas preces, assim como os muçulmanos recobriram as suas com o Taqiyah, obedecendo as posições ditadas pelo Alcorão quando das orações, rogando que “os lojinhas’ não sofressem graves prejuízos.
O Todo-Poderoso, que há muito tempo anda conosco até o pescoço, ordenou que nos virássemos sozinhos, que nas ‘coisas’ da Terra Ele em nada interferiria.
Porém, o amanhecer primeiro do novo ano rompeu à mesma hora de sempre em cada meridiano como ocorrera em todo o sempre desde o surgimento da primeira molécula, há 15 bilhões de anos, nas águas oceânicas deste Orbe.
Os simplórios de todas as crenças, seitas, filosofias e doutrinas então se defrontaram com as dívidas contraídas — ou porque, sobretudo os crédulos dos “poderes” da astuta Mãe-de-Santo que acreditaram que somente ela os salvaria do Juízo Final, do Fim-do-Mundo, da Varredura Total do Planeta, ou porque confiaram no vaticinado nos escatológicos discursos da ditadura tecnocrata e aproveitaram todos os prazeres que o consumo contemplava — no cartão-de-crédito, no cheque especial em vermelho quase roxo, que de virtuais nada tinham, para honrar os compromissos assumidos para com a aludida sacerdotisa ou com os custos de deslumbrantes viagens a sítios paradisíacos, cruzeiros marítimos em babilônicos transatlânticos, festas e bacanais que imaginavam jamais pagariam.
Definitivamente, ingressávamos na “Era Technium”, algo absurdamente mais poderoso do que a Inteligência Artificial: a Inteligência Sintética, em que a inteligência das máquinas não será uma imitação ou de modo “artificial”, o que fatalmente nos será pior: ela poderá ser uma forma de inteligência autêntica!
Pelo andar da (carruagem é algo do Século XX) Ciência da Computação, em 2050 a bolha preta, a Inteligência Sintética, terá absorvido a bolha azul. A Humanidade...