Da cidade e seus habitantes
Um sujeito redondo. Era assim que se parecia. Entrou. Todos olharam. Fuxicos daqui e dali, ninguém se atreveu perguntar. O sujeito redondo chegou e entrou. Todos olharam. A música parou. A dança parou. Da cozinha não se ouvia nem o bater das panelas. O sujeito entrou, olhou e saiu. No dia seguinte não se falava outra coisa. A cidade parou. Só os jornais tocaram no assunto. Cada editorial deu sua própria versão. Especialistas fizeram às mais mirabolantes interpretações. Do sujeito redondo pouco realmente se soube. Somente conjecturas. Todavia, a despeito do silêncio que se seguiu, fuxicos e teorias se impuseram: ora o sujeito redondo era descrito como um misterioso homem que saira da cidade depois de ter perdido esposa e filhos num incêndio. Porém, ninguém era capaz de lembrar do ocorrido, nem o mais velho cidadão, há época com 92 anos e 40 quando do mencionado incêndio. Dos boatos, às afeitas ao diz - que -me diz, predominava aquele que afirmava tratar-se de um homem transtornado, porém, sem citar uma possível causa do problema.
Teve quem se propôs tratar da questão como uma opção de vida. Falou-se, inclusive, que a escolha era uma nova maneira de lavar a vida sem os custos que isso acarreta. Não é preciso dizer que quem assim se expressou era dependente da mãe, embora, já contasse com idade próximo aos 50 e nunca exercera nenhum ofício. E também que, além de ser mantido pela idosa mãe, ainda a obrigava a pagar seus vícios e caprichos, além da pensão da filha, recém nascida.
Era o caso mais escabroso, é verdade. Havia a opinião... mais filosófica, digamos, que afirmava se tratar de um caso peculiar de "enfado do mundo" sem, no entanto, saber dizer o significava tal "enfado do mundo".
Também teve tentativas de explicar o quadro como característico de alguém acometido de apoplexia, sem considerar, no entanto, que o termo se refere a perda da sensibilidade e do movimento (em contraste com o que se viu quando o sujeito saiu do salão) provocado por hemorragia cerebral. Como se vê, de tudo se disso um pouco.
Fato é, e ninguém discordava: do sujeito redondo, pouco, ou nada, se sabia. Por ignorância, conveniência ou qualquer outra razão, não se queria tocar no assunto, a não ser, e só por breve instante, para acrescentar outros boatos. E quanto mais versões se difundiam, menos se sabia do sujeito. Menos se havia o que pudesse ajudar na solução do mistério que a cada dia, tanto quanto num caso de Sherlock Holmes, acrescia ao inusitado, e a solução ficava mais longe. No caso do gênio inglês, sabemos como termina seus casos. Porém, no do sujeito redondo, se perdia o tal fio da meada. Tudo se cogitava, por habito, dizia o velho padre cansado das mesmices queixas sem causa dos "fieis".
Era noite de lua baixa. Lua dos amantes que se encontram às escondidas. Às escondidas porque naquela sociedade, ela própria, habitada e habituada por gente disposta aos boatos, não era recomendado que os prazeres da carne fossem de todos conhecidos. Então, como dois fugitivos, os amantes se encontram.
É hora do canto do galo, diz o amante à mulher que lhe deu novo sentido de vida. E ambos saem e seguem direção opostas. Não se sabe, nunca se saberá, mas o amante, após o encontro, não foi mais visto. A amante, inconformada, porém, nunca disse a causa do seu infortúnio. Recolheu -se a tal ponto, que nunca mais se permitiu ser vista em público. Não vai mais às festas, à Igreja. Quando se permite sair, é somente para acompanhar a mãe idosa ao médico. Nem o irmão, sobrinhos e cunhada, visita. Só os vê em eventos especiais e em casa. Vive reclusa como a um prisioneiro esquecido na Bastilha. É verdade que quando mais jovem, e mesmo no tempo dos encontros secretos, dispunha de um espírito livre e alegre. A nobre alegria das sensações sublimes, quando se está apaixonado, cedeu espaço para um espírito triste e recluso. Não há cor nos jardins públicos, nem graça no sorriso espontâneo da criança, fenômenos tão apreciados e aplaudidos nos tempos juvenis.
"Ah, que tempo maravilhoso aquele!", ouviu -se, ao longe, quer dizer, ao final da missa, a velha rabugenta, em tudo, velha e rabugenta, ao se referir às antigas festas. Era conhecido por todos a morte suspeita do velho, igualmente rabugento, marido da velha rabugenta. O velho foi achado morto próximo ao porão da casa. Nenhum sinal de luta, arrombamento, ferimento, nada, apenas estava ali morto. De modo estranho as investigações se encerraram sem nenhuma conclusão. Não precisa dizer que o fato gerou comentários e versões às mais mirabolantes. Fato é, meses depois do ocorrido, soube -se que o delegado responsável do caso, fora visto em companhia da velha rabugenta. Ela, já uma senhora à beira dos 60, ele, um jovem rapaz de menos de 30. Tudo se disse, nada se provou; a vida seguiu. Do velho ninguém se lembra.
"Ah, que tempo maravilhoso aquele!" Ouviu -se, nada mais. A velha rabugenta repousou naquele dia. O jovem ex-delegado, se casou. Boatos surgiram. A vida alheia atrai olhares atentos.
O sujeito redondo foi visto, se disse, porém, sem comprovação. Não precisa provar o que não se quer saber. Todavia, se acrescentou, para deleite dos jornais, que fora visto nas imediações da casa da velha rabugenta. Mas quem quer saber? Na manhã cinzenta que já desconta, apenas um vestígio, um tonel e farrapos de panos velhos e sujos, casa de mendigo, disseram, mas quem quer saber? Pra que saber? Diógenes de Sínope! Alguém gritou. Ninguém se interessou. Na avenida, carros passam velozes.