O coelhinho da Páscoa está morto

Odeio fumaça, cigarro, tudo que queima. Realmente não posso namorar um fumante. Não é bem uma questão de “valores”, como dizem, e sim de pulmões. Não sei como eles gostam de mim. Eu sou careta. Na verdade, me puseram careta. Eu sou a mais livre das livres. Só acho que estou em modo repouso, mesmo que eu não conheça o relaxamento. Entre as zonas, a de conforto é a pior. Não existe mansidão quando os pregos se acomodam em suas costas. Não queria ficar triste tão cedo. Digo, em março. É que março está infinito. Tinha me esquecido da Páscoa, eu sempre esqueço. Eu nunca me atento aos dias de carnaval também. Só sei que existem. E sei que os feriados, assim como os finais de semana, não existem pra mim. Sem querer dramatizar o que não é só meu.

Eu fui descobrir hoje, nas redes antissociais, que as famílias realmente almoçam juntas aos domingos. E aos domingos de Páscoa, especialmente.

Não pode comer carne porque disseram que não. Mas pode ser escroto o ano inteiro, encher a cara todo fim de semana por essa ser sua personalidade, ser um imbecil que torra o dinheiro da mãe e da tia, um desocupado que tem muito mais do que eu ou do que você, um reprodutor de inutilidades e sobretudo um potencializar de problemáticas sociais. Mas a postagem brega e esvaziada sobre Jesus está vivíssima. O Jesus da fé, eu digo. Ninguém quer falar sobre o que seria o Jesus histórico. “Bandido bom é bandido morto”. Isso não lembra Cristo? Crucifixo social vindo de pseudocristão é dureza. E às vezes não é só social, não. Quase nunca é.

Não sei se os bolsonaristas se fazem de sonsos ou são tão incapazes que não têm sequer a capacidade cognitiva de compreender a sua própria ignorância. E o pior é que, da mesma forma que os idiotas não sabem que são idiotas, os burros não somente não sabem que são burros — como também se acham portadores da verdade absoluta. Que não existe.

Acho que prefiro a fumaça daqui. Impossível estudar com a banda Magníficos no talo. Absolutamente em todo domingo. Ou Calcinha Preta. Ou qualquer coisa que não seja o som do meu desespero. Tudo piora com a tosse dos fumantes. Não sei se é maconha, se é cigarro normal, se é vape ou se é tudo junto, o que eu honestamente desconfio. Eu não sei como alguém continua fumando enquanto tosse. Mas que sinal claro de que a vida não é mais nada senão aquilo. Prazer momentâneo. Eu entendo. Apesar de não fumar, de não beber, de não ter vida social. Eu entendo.

Minha mãe disse que ficaram com dó de mim por ter passado a semana santa sozinha e sem ovo de Páscoa. Eu, com 20 anos. Mas eles não sabem do pior: passei como sempre passo todos os finais de semana, como uma dona de casa que sou, só que estudando para uma prova que foi remarcada como um punhal em nossas costas estudantis. Isso doeu. Depois tem um trabalho pra gravar, coisa que não sei fazer, do meu professor cujo filme foi pra Cannes. Apenas. Além das outras provas que estão por vir para nos deliciarmos. E é claro que não ganhar um ovo de Páscoa me deixou profundamente triste, pois sou completamente a favor de falsas tradições criadas e alimentadas pelo capitalismo. Eu gosto de tudo que eu não tenho acesso. Pra ser justa, minha mãe me ofereceu. Mas, pra ser mais justa ainda, eu não aceitei. Ela não tem mais dinheiro pra nada, coitada.

Só aceito o que me dão em mãos, não me pergunte se eu quero. Eu nunca, nunca, nunca diria que sim. Eu era a criança que não pedia nada. Eu só ficava sonhando com a promessa que meus pais me fizeram quando elas passassem no concurso. Um passou no que queria, o outro não. Não realizei meu sonho de entrar numa loja de brinquedos, com 5 minutos cronometrados, podendo pegar o que eu quisesse. Que promessa terrível. Eles foram uma espécie de Celso Portiolli com essa ideia. Mas eu ganhei um fogão com rodinhas de meu pai. Depois eu ganhei um micro-ondas. Mas nunca a geladeira. Também tinha uma tábua de passar. Mas não uma pia que saía água. Tudo, como todos os brinquedos “para meninas”, me preparando para cuidar da casa. Que, no pensamento popular, significa casar. Eu tenho um colega que casou, no sentido de morar junto, com 22 anos. Credo. Eu perguntei se ele deu um ovo de Páscoa pra ela, ele disse que ela já ganhava dos alunos. É, meus amigos, esse companheiro falhou miseravelmente. Por mais diferentões que eles sejam, todo mundo gosta de ser lembrado. E, se não forem como eu até os 10 anos, as pessoas gostam de chocolate. Na verdade, eu sempre gostei, mas não podia comer. Lembro que uma vez meu pai trouxe chocolate de soja pra mim. Eu supostamente tinha uma alergia, mas isso nunca existiu. O dia em que um médico disse as doces palavras: “essa menina não tem nada”, eu passei a odiá-los um pouco menos. E aquele chocolate foi a melhor sensação do mundo até ouvir que eu não tinha restrição alguma. Eu nem lembro do meu primeiro ovo de Páscoa, mas eu já era grande. Antes eu não podia. E eles também não podiam pagar.

Eu era excluída na escola inclusive por um mero chocolate, mas minha mãe sempre fez questão de me incluir. Sinto que só tenho ela. Que só gostam de mim, quem gosta, por causa dela. Que eu seria ruim se não fosse por ela. Que eu passaria despercebida se não fosse filha dela. Eu não gosto de compartilhar isso. Eu sou bem mão aberta, mas não pra soltá-la.

Quando eu puder, eu vou comemorar todas as datas. Minha família não comemora tanto. Ou comemora, mas em segredo, em suas próprias casas.

Quem comemora pra chamar os outros, só farreia. Eu não bebo. Eu sou excluída disso também. Conviver com bêbado, estando sóbrio, é algo que Jesus faria. E eu também. A diferença é que eu não tenho a elevação espiritual que isso requer.

Eu queria que tivessem feito comigo aquelas brincadeirinhas de esconder ovos de Páscoa pela casa ou pelo quintal. Mas não tinha casa, quintal, ovos de Páscoa, dinheiro, saúde (a minha). Não tinha nada. Depois teve casa, quintal e metade da minha saúde. Ah, eu já tive uma coelhinha também. Que foi brutalmente assassinada. E sem ovos de Páscoa. Que inútil. Mas não merecia morrer decapitada pela mais torpe criatura do mundo: um gato.

Preciso estudar. E me exercitar. E ir pra faculdade. E ter aula no horário mais escroto possível. E depois fazer o evangelho com minha mãe, como uma boa filha que sou — porque é só o que justifica uma agnóstica e ateia a fazer isso: o amor.