Cabedal Fático - Cacoetes Contemporâneos da Língua Portuguesa
CABEDAL FÁTICO - Cacoetes Contemporâneos da Língua Portuguesa
Tenho um amigo que há bastante tempo tem interesse especial na lingua portuguesa praticada no Brasil, sobre suas nuances semânticas, fonéticas, etimológicas etc. Nos últimos tempos desenvolveu certa implicância com o que ele considera empobrecimento da linguagem. Por exemplo, usa-se uma determinada palavra, quase indiscriminadamente, para nominar quase tudo em detrimento de palavras de significados mais exatos e adequados. A campeã, nesse quesito, e que tem resistido ao tempo, segundo ele, é o verbo colocar: em vez de falar-se "vestir a roupa", diz-se "colocar a roupa"; em vez de "calçar os sapatos", "colocar os sapatos"; em vez de "servir a comida no prato" ou "à mesa", "colocar a comida no prato" ou "à mesa"; "colocar na emissora de rádio ou TV tal", em vez de "sintonizar a emissora de rádio ou TV tal"; e assim sucessivamente até quase ao infinito. Ele também implica com o uso indiscriminado de novos modos de falar, segundo ele, pobres, mas que, do ponto de vista de quem fala, refletem modos "descolados" de ser, de dizer as coisas. Ele está adoecendo, aos poucos, de tanto ouvir e ver tais formas de expressão, seja no falar corrente quotidiano, seja na linguagem escrita, ou nos modos dos "comunicadores" da emissoras de rádio, de TV e de inúmeras plataformas digitais de Internet e tais, de personagens de novelas, séries e filmes... Adoece um pouco mais a cada vez que ouve ou lê um "olha só"; um "então assim"; um "vale lembrar", ou "vale dizer", ou "vale ressaltar"; um desnecessário "entenda"; um formalíssimo "fique bem", "se cuide ou "fique em paz"; um "gratidão"; um "lugar de fala"; um "muitas camadas"; um "para além"; um "reengenharia"; um "reinventar-se"; um "ressignificar"; um "narrativa"; um "virar a chave" e mais um sem número de "falares" que, segundo ele, a maior parte dos casos são meras afetações de quem se utiliza dos termos. Tempo atrás quase teve um ataque de apoplexia ao ver e ouvir, num jornal televisivo, um ministro do STF sacar um "...o cabedal fático...", ao se referir a um conjunto de fatos, ou de provas, ou de indícios, sobre um determinado processo judicial. Durante semanas ficou ecoando no seu cérebro, à sua revelia e quase o enlouquecendo (TOC?), a terrível expressão: o cabedal fático! o cabedal fático! o cabedal fático! o cabedal fático! o cabedal fático! O cabedal fático! O cabedal Fático...
Por outro lado sente-se aliviado pela constatação de que já não se usa tanto "paradigma" quanto se falava até há pouco tempo, quando ocorreu, segundo ele, um verdadeiro surto de "paradigma", de tanto que se abusava do termo. Festeja também que pouco se usa atualmente o famigerado "agregar" e seus derivados como "agregar valor", "agregar conhecimento", "agregar experiência" etc. Nem o "à nível de", que felizmente ficou lá bem atrás, só os muito retrógrados, gramaticalmente falando, ainda usam "à nível de", diz ele. Em compensação e infelizmente vivemos mergulhados numa epidemia do verbo "impactar", especialmente de seus derivados impacto, impactante, impactado e por aí afora: não se diz mais "estou emocionado", é "estou impactado". Pra sensibilizado, é impactado. Pra comovido, é impactado. Pra impressionado, é impactado. Pra entristecido, é impactado. Pra enraivecido, é impactado também, claro. Tudo é impactante: a imagem é impactante, o barulho é impactante, o silêncio é impactante, a escuridão é impactante, a claridade obviamente também é impactante, a música, a cena do filme ou da novela, a declaração do ministro, a apresentação da dança, a manifestação política, o livro, o conto, a crônica, tudo, quase sem exceção, tende a ser "impactante". Eu tenho a clara impressão que o verbo impactar e seus derivados já desbancou o verbo "colocar" e seus derivados, assim como desbancou "paradigma" e "à nível de". E se encontra claramente à frente dos atuais "vale lembrar" e do "para além". Mas não muito à frente. Briga de foice.