Manhã de Páscoa
Manhã de Páscoa de 2024. Ainda lembro de agora a pouco, os detalhes da missa e da benção de alimentos. Ainda salivo os sabores do café. A madrugada enveredou-se lá fora e cedeu lugar a manhã de Sol. Mas ainda permanece madrugada na memória.
Já é tradição: eu e minha mãe, levantamo-nos cedo, as 4h da manhã, no domingo de Páscoa, para a missa na Igreja de rito católico ucraniano, na comunidade em que participamos. Antes, todos da família iam, inclusive pai e irmãos. Hoje a família tem meu irmão casado, com um filho, que desde ano passado começou a participar de novo. Meu irmão mais novo e meu pai ficam em casa. A cada um cabe suas decisões.
Chegamos e a igreja estava quase vazia. O silêncio da madrugada adentrava porta adentro e abrigava-se no interior da Igreja. Dois senhores que dormiam ali fora discutiam entre si, pensando em mudar de lugar. No interior da Igreja ainda está exposto o sudário, a “plastanetsiá”, encimado pela Cruz e envolto em velas. Os fiéis que chegam ajoelham-se e andam por alguns metros, joelho a joelho, para beijar as chagas de Cristo. Lá fora é madrugada, escuro e esquecido. O mundo está adormecido.
O padre está presente. Converso com ele. Vejo o jovem sacristão, que herdou o serviço de seu pai e de seu avô. Ele tem cara de sono. Ajudo a acender as velas. A celebração começa. O sudário com o expositor será tirado: os voluntários aguardam. O povo sai para fora para a procissão solene em volta da igreja, e as portas são fechadas. É um ritual: o padre dá uma volta, as cantoras se revezam no canto “Xrestós Voskrés!”, “Cristo Ressucitou”. O padre para na porta, rezamos e cantamos, e com um leve toque do crucifixo na mão do sacerdote, as portas são abertas: a procissão triunfal entra! Pela igreja ecoa: “Xrestós Voskrés!”
Os cantos de missa começam. Uma senhora aponta uma vela apagada, nervosa: o sacristão não nota. O padre se atrasa. Levam-lhe água no altar. Em tempo, ele, em ucraniano, faz as preces. Por uma altura da missa, correm procurar a leitura do dia. Atrapalhando-se, encontram no livro de leituras o “Domingo de Páscoa” e a leitura do Atos dos Apóstolos.
Tudo é luz. Tudo é solenidade. O branco e o amarelo das decorações recordam: hoje é um dia tão alegre feito a primavera; tão radiante quanto o Sol de verão. O padre recorda os fiéis as origens da festa: a passagem da escravidão para liberdade; a morte do Cristo, a sua Ressurreição, a nossa ressurreição.
Fim da missa, o padre conclama: vamos à bênção dos alimentos! Quem esperava o momento, já se felicita com a proximidade do café suntuoso. O povo, embrulhado em suas casacas, se remexe em seus bancos e nos corredores, indo buscar as cestas que deixaram no carro ou na igreja. No pátio da igreja fazem um círculo: a sombra da madrugada desceu, e deixou um manto cinza esbranquiçado pairando sobre os morros.
Um jovem e um coroinha ocupam-se da Cruz, do cesto de ofertas e da água benta. Imediatamente o sacerdote começa a bênção. Aqui e acolá as pessoas acompanham. As velas acesas pairam nos cestos ou próximo deles. Toda sorte de comida é exposta para o benzimento: é tradição trazer um carneirinho de manteiga, ovos cozidos, carne assada, salame, sal, krim ou raiz amarga preparada com beterraba, e a tradicional pasca; leva-se ovos de chocolate, outros levam tortas, demais doces, frutas, entre outros alimentos. Muita água e benzimento depois, as famílias já levantam “tenda” e guardam os alimentos: mais uma celebração pascal termina, ao menos na sua parte mais dedicada a presença do fiel na igreja. Em suas casas as famílias se juntam para provar o café benzido e encher suas mesas de iguarias.
Minha mãe se lembrou dos senhores dormindo no pátio, e levou-lhes uma bandeja de bolachas. “Tanta comida reunida e ninguém lhes dá nada!”, disse ela. Também deixou uma bandeja de pãezinhos de mel para a cesta do sacerdote. Ela faz a Páscoa parecer mais próxima do que deveria ser.
Partimos, revestidos da luminosidade da celebração. Em casa, também provamos nosso café.