SEXTA-FEIRA SANTA DA MINHA INFÂNCIA

A Sexta-feira Santa chega, e com ela, regressa à minha memória uma enxurrada de lembranças de uma época em que este dia já foi o momento mais solene do ano. É como agora abrir um álbum de fotografias amareladas pelo tempo, testemunhando costumes que o próprio tempo tratou de abolir. Falo da Sexta-feira Santa da minha infância, na roça onde nasci e cresci, no decorrer do final dos anos setenta e começo dos oitenta do século que passou.

Era um dia de penitência, puro, imaculado, inocente. Para começar, nas casas sertanejas, tinha-se por hábito, durante toda a Semana Santa, virar de costas os quadros de imagens sacras pendurados na parede. Esse procedimento era como que um sinal de respeito e solidariedade ao sofrimento que aproximava Cristo do Calvário e da crucificação. Logo no Domingo de Ramos, era costume fixar na porta principal da casa alguns ramos silvestres ou, mais suntuosa, uma pequena cruz de palha de carnaúba.

A quinta-feira santa era, já, um dia considerado “grande” (assim se definia a Sexta-feira Santa) e tornava-se um expediente de oferendas. A gente mais humilde peregrinava nas casas mais abastadas pedindo ofertas para o almoço da Sexta-feira da Paixão. A oferenda tinha o valor de uma oblata ou uma indulgência no céu. Era também costume, entre os habitantes do campo, a oferta entre si de feijão verde, visto que a efeméride coincide sempre com o período de produção de milho e feijão durante o inverno cearense.

A Sexta-feira Santa era, assim, um dia de abstinência completa. Jejuava-se durante toda a manhã. O jejum tanto valia para adultos quanto para a meninada. É certo que, para este segmento, as horas duravam uma eternidade, e rezava-se para que o meio-dia chegasse, e com ele, a mesa farta, com suas novidades no cardápio, petiscos diferentes saboreados uma vez ao ano. Nesse momento, ansiosamente aguardado, e em combate à fome passada durante a manhã, a gula funcionava por todos os outros pecados não praticados nesse dia.

O rigor era tanto, que nem mesmo a ordenha era permitida, pois se acreditava que da mama da vaca, em vez de leite, sairia sangue. As bodegas cerravam suas portas. Não se tocava em dinheiro, mesmo que o tivesse. As palavras eram comedidas. A molecada era obrigada a se comportar rigorosamente conforme os cânones da liturgia sertaneja. Baladeira e gaiola, nem pensar, para glória dos passarinhos.

Ao meio-dia em ponto, enfim, era servido o almoço, à base de peixe, como reza a tradição. Nas casas mais favorecidas, o bacalhau era o grande e esperado bocado do ano. Recordo, com detalhes, meu pai, respeitosamente sentado à cabeceira da mesa, e minha mãe nos servindo, com a sua diligência sem igual. Após o manjar, rezava-se, de pé, em torno do banquete, em tom de agradecimento.

Uma atração à parte, durante a tarde, era ouvir no velho rádio de pilha, a transmissão do radioteatro “A Paixão de Cristo”, um clássico da dramaturgia radiofônica estreado no final da década de cinquenta, na célebre Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A peça antológica, durante muito tempo, foi reproduzida toda Sexta-feira Santa por centenas de emissoras Brasil afora. Dirigida por Floriano Faissal, um dos mais famosos radioatores da época, tem autoria do talentoso Giuseppe Ghiaroni. No elenco, Mário Lago, no papel do Rei Herodes, e Roberto Faissal, no papel de Jesus. Com patrocínio de Melhoral, a Rádio Nacional produziu, então, uma das mais épicas radiofonizações de todos os tempos. "A história de Nosso Senhor Jesus Cristo", no seu título original, contou com centenas de profissionais. Recordo com clareza: minha família na sala, diante do velho rádio Semp, acompanhando, concentrada e comovida, a dramaturgia que arrancava lágrimas e compaixão por Jesus, e desprezo pelos que o maltratavam com gritos e açoites.

Assim foi a Sexta-feira Santa da minha infância e da roça onde nasci.

Feliz Páscoa!

PEDRO PAULO PAULINO
Enviado por PEDRO PAULO PAULINO em 29/03/2024
Código do texto: T8030705
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