Negou-se  a que lavassem seus pés
 

          Nesta Sexta-feira da liturgia do Tríduo Pascoal, a Igreja celebra, com a morte, o fim da Paixão de Cristo. Há, no bater da matraca, tristeza lembrando a morte. A matraca é um pedaço de madeira, já envelhecida por tantas semanas santas idas, com argola dos dois lados, que faz um barulho estranho e triste, mais do que medieval, em substituição à alegria das campas e dos sinos, que, parados, silenciam, aguardando, no Domingo de Aleluia, o júbilo da ressurreição. A Igreja é mestra nisso, no rito ou em qualquer coisa, quando em tudo coloca um significado, nas cores dos paramentos, nos símbolos de ouro ou da pobreza; e também na vida, na alegria ou na tristeza.  Entre esses rituais está a cerimônia do Lava-pés.
          Assim como historiam os Evangelhos, Jesus Cristo, na chamada Última Ceia, instituiu o simbólico rito do lava-pés, quando, humildemente, colocou os pés dos seus discípulos numa bacia cheia d’água, lavando as poeiras daqueles caminhos de barro; enxugando-os para depois beijar os pés dos seus companheiros. Há quem se refira a esse episódio como “cerimônia do beija-pés”. O apóstolo Simão Pedro insinuou a não consentir, mas o Mestre deixou bem claro, sem alternativa: lavaria os pés de quem participasse com Ele naquela ceia... E ainda pediu continuação àquele ato: “Se eu, o senhor e mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (João 13, 14); como lhes deixasse mais um preceito do que um rito. E por isso, a Igreja preservou a tradição, do Papa aos bispos; dos padres a todos os pastores, hoje procedimento adotado em muitas religiões.
       Ubaldina, irmã de José Maria Barbosa Gomes, Professor do Lyceu e da UFPB,  mulher virtuosa, conhecia como ninguém o Ciclo Litúrgico e, sempre muito ligada à Igreja, participava infalivelmente da sua organização. Tinha de tudo para explicar sua quotidiana devoção, até poderia ter sido uma autêntica diácona. Não se distanciava, em todos os sentidos, da Igreja;  até sua casa, na Rua Conselheiro Henriques, distava uns cem metros da Basílica Nossa Senhora das Neves, então Catedral. E ainda artista, pintava santos e santas com as próprias roupas, espadas, livros, bandejas, cordões e outras coisas que caracterizariam cada um deles; menos sorrindo, também porque nunca se viu santo de altar rindo. Às vezes, frequentava missas e novenas com a sua fiel cozinheira Chicó, matuta desconfiada,  trazida das brenhas da Una de São José.
          Essas ligações e convivências, facilmente, fizeram Ubaldina assentar o nome de Chicó para que o solemnis arcebispo Dom Mário de Miranda Villas Boas lavasse, enxugasse e beijasse os calejados pés de Chicó. Quis até fazer-lhe surpresa, deixando que ela soubesse apenas no dia e hora do tal ato religioso. Sugeriu, por razões práticas, que na Quinta-feira Santa, sua cozinheira fosse à Igreja de sandália. Ao que Chicó reagiu: “Nunca fui à Igreja descalça...” Enfim, Ubaldina resolveu lhe revelar a honraria: “Chicó, o arcebispo vai lavar e beijar seus pés, na Missa da Quinta-feira Santa”. Com veemência Chicó muxexeou: “Eu não deixo a senhora fazer isso comigo, imagine o bispo...” Assim, em poucas palavras, negou-se Chicó a que o arcebispo lavasse e beijasse os seus pés. Ubaldina, conhecendo o temperamento de Chicó, recuou sem arrodeio e com facilidade, substituiu-a por gente do soçaite...
          Várias vezes pedi a Ubaldina que me contasse essa história, e em todas elas mais compreendi que é mais fácil lavar e beijar os pés dos ricos do que essas duas extremidades inferiores dos pobres, pés tão bem pintados, sob o causticante Sol e ao lado do cactus, no modernismo do Abaporu, de Tarsila do Amaral, e os disformes, como dos Retirantes, de Portinari.

 

DESTAQUE: Compreendi que é mais fácil lavar e beijar os pés dos ricos do que essas duas extremidades inferiores dos pobres