O dia que descobri minha religião
Era sábado, e eu conhecia a dinâmica de todos os sábados. Nas cidades mais populosas do interior do nordeste, vivencia-se a tradição culturalmente massiva das feiras livres, o famigerado shopping center da periferia rural capitalista, ou melhor, o anacrônico costume herdado do mercantilismo que ainda se mantém funcional como algo cotidiano.
Aqui não era diferente. Acordava cedo com carros de som anunciando promoções, pessoas gritando, vendendo, comprando, falando alto e um barulho de trânsito que misturava o arcaico e o moderno. Carros buzinavam para que carroças saíssem da frente, senhoras idosas acompanhadas de carros de mão com trabalhadores infantis, bicicletas, motonetas, tudo isso instituído naturalmente em uma dança desarmônica.
Meu pai não entendia por que eu não gostava de acompanhá-lo nesses afazeres. De certo modo, nem eu exatamente entendia. Aquele tanto de gente, de coisa, de estímulo causava desconforto e sobrecarga sensorial. Aliado ao espaço, ainda haviam os objetivos da atividade que eram tediosos: fazer coisas de adulto, ouvir diálogos de adulto e ser engrenagem fundamental na convenção social da estrutura de família: “Aqui o meu filho, tá um galalau!”
Mas que diabos era um galalau?
Todos riam, animados, eu não.
Visitávamos o trabalho do meu avô, o único seleiro da cidade (fabricante de selas para equinos) que sobreviveu ao irrefreável advento tecnológico da modernidade. Um trabalho extremamente artesanal em contraposição aos grandes industriais da moda agropecuária e à efervescente procura por acessórios para automóveis.
Não havia muita demanda de trabalho para meu avô, mas havia muita demanda social. Era um clube informal que reunia velhos homens nostálgicos, relembrando costumes, relembrando amores, às vezes fatos, desafetos, tudo isso regado ao cheiro de cachaça, couro e cola de sapateiro.
Me colocavam sentado numa mesa larga de madeira, e eu achava tudo isso um saco. Não compartilhava da nostalgia, eu ansiava pelo futuro. Esperava ver algo tecnológico na feira, algo inovador vindo do Paraguai, funcionando à 4 pilhas AAA. Quase nunca acontecia, então eu me contentava com um refrigerante de procedência duvidosa numa garrafa de vidro que meu avô fazia questão de pagar.
Ao serem cumpridas as primeiras expectativas familiares, eu e meu pai nos deslocávamos às compras. Em suma, era o papel dele, apesar de não ser cumprido fielmente todas as semanas, a compra da carne vermelha. Caminhávamos ao mercado público dentro da feira livre, ambiente fétido, com poças de sangue e cheiro de insosso. Lá estavam pendurados, expostos em ganchos ou estendidos em balcões, diversas peças de animais mortos.
Eu não lembro qual parte era comprada, eu estava sempre horrorizado e encantado com aquelas cabeças de porco penduradas. Estava curioso para entender o porquê da exposição explícita dos esquartejamentos. Meu pai sempre me dizia que era para atrair o freguês para a melhor carne. Para mim, todas eram iguais.
Ao sair do mercado público, uma senhora que arrastava consigo três crianças pequenas nos parou. Ela nos fez um breve relato de como era pauperizada sua vida, como a fome visitava sua casa diariamente e como ela se sentia inútil por não conseguir alcançar o básico.
Aquilo constrangeu meu coração. Mas não tive tempo de esboçar qualquer tipo de reação. Meu pai subitamente entregou a sacola cheia de carne e disse à senhora: “Leve, você está precisando mais do que a gente”. Ela não esperava por isso, ficou imóvel com um saco de carne vermelha.
Meu pai se virou e me levou embora. Eu me imaginei falando muitas coisas, mas nada saiu de minha boca. Porém, ele tinha algo a dizer, e não deixou que esse momento passasse sem que isso pudesse ser dito.
“Essa aqui é a única religião que eu acredito.”
Desde então, mesmo que meu pai tenha assumido um papel desvirtuoso e violento em muitos episódios da minha vida, eu tenho seguido a religião dele.