A menina cigana
A Menina Cigana
Entrei no ônibus em Salvador. Sentei-me do lado esquerdo junto à janela. O ônibus iniciou a viagem pontualmente às doze horas, como estava previsto. Pontualidade baiana, desmentindo quem afirma não há alguma pontualidade na Bahia. Viajava em direção a Serrolândia, minha cidade natal. Em geral não sei quantos quilômetros minha cidade natal dista da capital, porém sei que a viagem é de oito horas, um pouco mais, um pouco menos. Isto quando se toma a Viação Águia Branca, que perfaz a BR 052, a chamada Estrada do Feijão.
Refazendo na mente a viagem, passava já no município de Simões Filho, ainda na BR 324, quando uma jovem mulher embarcou. Sentou-se do lado oposto, postou-se do lado da janela. Eu olhava a paisagem, as casas pobres da cidade e o verde bem verde dos matos. A zona da mata é verde forte, não há o cinza do semiárido. Quando passo por casas minha imaginação se transporta para dentro delas, imaginando quem vive ali, quais suas histórias, seus pensamentos, suas emoções. Quem as fez chorar ou sorrir. Quem as fez sofrer, quem lhes afagou, quem lhes feriu com palavras, silêncios, olhares, corpo, ausências. Quantas lutas travou quem habita as moradias da estrada, quantas esperanças e ilusões, que mais de falta viverá, que comidas boas provam, quantas interrogações, quais as respostas que dão para as reflexões suspensas. São mais seus prazeres e suas dores? Serão menos suas dores e seus prazeres? Para onde dirigem suas lembranças e seus planos? Há palavras nestas habitações; quais se pronunciam? por quê? Por que não se ouvem outras? As que ficam presas na garganta, as que só correm pelos pensamentos, as que podem ou não podem se expressar pelo olhar, por um afago ou uma violência. É ali que se entrelaçam a vida e a não vida, o fim de uma, o início da outra ou o fim e o começo das duas juntas.
Deixemos as casas e os verdes e voltemos para o ônibus, onde estava antes de meus olhos e meus pensamentos me levarem para fora dele. Olhei para o lado e a jovem lia um livro. Sou apaixonado pelos livros. Quando vejo alguém lendo algum deles, quero logo saber qual o seu título. Se forem livros de autoajuda ou de assuntos correlatos, me desinteresso e lamento. Se o título me parecer interessante, tento imaginar o que a pessoa está lendo, o que a junção das letras, a integração das palavras, a correlação das frases e o conjunto dos parágrafos comunicam ao leitor. E tento acompanhar, pela expressão facial do leitor, quanto de prazer lhe proporciona a leitura, quanto de espanto, novidade e admiração a obra lhe inspira. Desta feita, não tive opinião sobre se era uma boa leitura: a jovem lia um dos volumes da saga de Harry Potter. Não sei muita coisa sobre esta obra, vi alguns filmes, mas não foram suficientes para julgar se a leitura do livro, sobre sua história, era uma boa leitura. Suspendi o juízo, mas fiquei de igual forma encantado com o envolvimento da leitora. Para ela não havia paisagens, nem casas, nem habitantes das casas, nem pobreza, nem verdes; só havia a viagem e o livro.
Havia outros passageiros, não tão mais importantes que a leitora, de forma que nem lembro dos outros, deviam existir crianças, mães, pais, jovens com roupas talvez vermelhas, brancas, azuis, calças jeans; sempre há muitas pessoas vestidas de calças jeans, camisetas brancas, camisas azuis. Não me lembro de mais nenhum passageiro. Eles ficaram perdidos juntos com todos os outros passageiros de todos os outros ônibus que tomei na minha vida. Não sei das cores das suas roupas, dos seus olhares, dos seus olhos, se olhavam e para o quê, se lacrimejavam, se falavam e o quê; se eram belos seus cabelos, se algum era careca, se eram gordos ou magros e se dormiam ou ouviam músicas nos seus aparelhos auriculares. Só tenho diante da memória a moça leitora: era bela? Sim, era bela, não usava calça jeans, mas um vestido que realçava sua beleza, contudo, mais adorno que seu vestido e seus cabelos presos portava sua mão: um livro. Um livro sobre Harry Potter, porém um livro. É que o livro talvez detenha toda a magia do mundo: traz o passado; universaliza a linguagem; quem escreveu originalmente em inglês pode ser lido posteriormente em português; o livro transporta-nos para lugares distantes, remotos, abismais e por vezes inexistentes; ele nomeia o ilusório, cria mundos paralelos. O livro me encanta. A moça dentro de uma viagem fazia outra viagem por meio de seu livro. Eu a admirava; não consigo ler em viagens, se leio um trecho, logo me perco vendo as paisagens, as pessoas à beira da estrada e as casas com seus habitantes.
O ônibus levava a todos nós, eu e meus olhares, minha imaginação e a expectativa do encontro de meus pais e da terra do início da minha vida; levava a moça e seu livro, sua história, sua leitura e os personagens que a acompanhava. O motorista não sabia que transportava mais passageiros que os sentados nas poltronas. No entanto, eles estavam lá, mesmo sem pesar na carga real do ônibus. Essa minha bisbilhotice já começava a me incomodar, gostaria de saber por que aquela passageira quisera ler aquele livro, para quê; como seria a história, o que pensava dela, quais seus significados, o que lhe trazia de reflexão. É claro que não iria indagar-lhe nada disso. Não iria interromper sua leitura para ser tão indiscreto. As minhas interrogações pueris só interessam a mim mesmo. Por que querer saber de coisas que jamais se saberia? Sei que sou um tanto louco, mas penso em coisas assim! Isso me dá um sentido de pertencimento humano.
Estrada adentro ia o ônibus. Já passara de Candeias com seus dutos de petróleo e já ia do município de Santo Amaro para sua divisa com Amélia Rodrigues. Depois de Conceição do Jacuípe, o burburinho de Feira de Santana. Quebra-se a calma da estrada quando Feira de Santana borbulha com seu comércio agitado. A leitora fechou o livro. Eu participava da vida: os transeuntes na cidade, os que vão e vem, os que vendem, os que compram; todos sonham, todos dormem, todos acordam, pensam em um amor, um carinho, têm raivas, ódios, pavores, querem enriquecer, anseiam por um bom prato, querem um copo d’água. Todos vivem. Quem ontem sofria e hoje já não pensa mais nada! Quem agora vem à vida e já chora sentindo o calor do sol! A cidade movimenta-se. O coração das pessoas bate. “Quer água, moça? Geladinha.” “Quer salgadinho, moço? Tá gostoso!” “Custa quanto?” “Me dê um!” “Já fechou a planilha?” “Já! Pode ir embora! Boa Viagem”. E lá se vai de novo o ônibus para a estrada, deixando a planície de Feira de Santana, seu perder de horizonte para trás.
Agora sim! Tomamos a Estrada do Feijão rumo a Ipirá. A moça abriu de novo o livro. A paisagem já mais agreste, não havia mais o verde da zona da mata nordestina de Simões Filho e Santo Amaro. Intercalava-se o verde e o cinza, a visão e a fala das pessoas mais sertanejas. Passamos em Anguera, por povoados de nomes esquisitos como Buraco d’Água e Bravo e logo após chegamos a Serra Preta. É impressionante pensar sobre a origem dos nomes dos lugares, eles carregam a história, a cultura, as formações naturais, a memória de pessoas e que tais. Passamos pelos lugares, ouvimos ou lemos os nomes dos lugares e quase nunca pensamos sobre as suas origens. O povoado que atravessamos no município de Serra Preta não me lembro mais o nome. Contudo, lembro-me vivamente do embarque de uma senhora cigana com sua filha, a qual provavelmente teria entre oito e dez anos. Reconheci que a senhora era cigana pelas suas roupas. No entanto, a menina estava vestida como todas as outras meninas se vestem, fato que me causou surpresa, pois havia visto antes as meninas ciganas vestidas como suas mães. E eis que a menina se sentou ao lado da moça que lia Harry Potter e a sua mãe sentou-se a meu lado.
Façamos aqui uma digressão para falar sobre os ciganos. A região entre o agreste e o semiárido da Bahia é também muito povoada por ciganos. Eles são diferentes dos outros habitantes da região, porém estão, à sua maneira, integrados nela, da qual são componentes étnicos enriquecedores da paisagem humana. Passava por Serrolândia intermitentemente o clã de ciganos de Heráclito. Eles retiravam a cidade da rotina. Acampavam em alguma área de campo, perto da cidade e logo a rua estava cheia de ciganos e ciganas. As mulheres, com seus vestidos rendados e seus enfeites de cabelos, solicitavam das pessoas a leitura das suas mãos. Os homens negociavam com cavalos. Porém, era naquilo que não se conhecia muito bem sobre eles que se ouvia falar mais correntemente. Diziam que tinham uma língua própria, a qual só eles entendiam. Suas tradições os mantinham à parte da população, pois em geral se casavam somente entre si. Assim, os ciganos preservam suas tradições pela transmissão conforme a oralidade. São os pais que ensinam aos filhos no cotidiano dos acampamentos, nas festas, nas danças e nos cantos. Os meninos e a meninas ciganas aprendem participando e ouvindo as histórias e sobre as tradições. Poucos iam para as escolas e muitos eram analfabetos. Estavam à margem da escrita.
Voltemos à nossa viagem e para o ônibus. Quando a menina se sentou ao lado da moça leitora ficou também impressionada com a sua atenção pelo livro. E daí deu-se a mágica mais bela da viagem. Essa garota, no exercício de sua curiosidade infantil, teve a coragem e a disposição que eu não tivera. Indagou da moça sobre o livro, sua história e o que de tão interessante havia nela. E a beleza do diálogo se instalou para a minha admiração e emoção. A moça fechou por um instante o livro e se pôs a explicar o que lia para a jovenzinha curiosa e com um brilho nos seus olhos lindos. Do diálogo soube que a leitora era uma professora, lia o livro para depois prescrever sua leitura para seus alunos e instruí-los a fazer uma ficha de trabalho com vistas à interpretação da obra. Ela então conversou sobre a história, enquanto a mãe da garota às vezes ralhava com a filha para que esta não incomodasse a moça. Para mais surpresa minha a menina pediu à moça que a deixasse ler o livro enquanto viajava. Obviamente foi prontamente atendida.
Este fato me emocionou. Estava ali o encontro da oralidade com a escritura. A menina cigana se encantava com um livro grande, de uma história complexa e sem figuras. Ela queria ler. E para ela a viagem se transformou na oportunidade de leitura. Nada mais foi importante na viagem, só o livro, que antes prendia a atenção da moça, agora encantava a menina. A antiga leitora passou a olhar a paisagem. Para ela a leitura da ciganinha era mais importante que a sua. Professora por excelência, até no silêncio da leitura ensinou à nova mulher que ler é de suma importância.
Não preciso dizer que o fato me fez refletir sobre muitas coisas. Antes, a educação não era extensiva a todos, era exclusiva de alguns privilegiados. Nesses tempos a educação é inclusiva e todos os pais são obrigados a matricularem seus filhos nas escolas. Certamente a menina cigana fora beneficiada por estas leis e a ampliação do ensino básico. Outra mudança que aconteceu foi que os ciganos alcançaram, bem ou mal, direitos de cidadãos, logo seus filhos têm o direito de serem matriculados nas escolas em qualquer época do ano, considerando suas condições de nomadismo. O encontro da menina cigana com o mundo letrado ocorrera anteriormente, pois quando quis ler o livro já dominava a arte de ler. Foi de igual forma o encontro de três mulheres, a mãe cigana, representando o mundo da oralidade e da tradição, a professora, representando o mundo da escrita e da crítica e a menina, quem possivelmente fará a síntese desses dois mundos, carregará suas tradições, porém confrontará com as reflexões críticas dos autores dos livros.
Transportei-me para o futuro e imaginei a adolescência da ciganinha, sua juventude, sua fase adulta: Suas leituras a levaria a confrontar-se com outros mundos, outras impressões. Suas descobertas e crises da adolescência talvez se tornariam mais intensas porque o choque entre a tradição e as novidades das escritas seriam mais densos. O grau de incompreensão de seu povo para com suas maneiras, compreensão e escolhas poderia ser elevado. Ela poderia se tornar uma liderança respeitada no grupo e poderia estudar questões que ajudariam a todos.
A julgar pelo olhar de compreensão de sua mãe, a leitura era considerada uma boa novidade para a sua filha. Deparar-se com um livro grande, interessar-se por ele, lê-lo o tanto quanto pôde e ouvir sobre a sua interpretação por alguém que o selecionara dentre outros, foi, com certeza, um momento inesquecível para a menina cigana. Ali sua vida transformou-se, ela que advinha, como todos nós, dos séculos de humanidade, ali pôde participar do melhor meio de transmissão de conhecimento que os homens criaram. Antes os mais velhos, os que cantavam e contavam, os rapsodos, os poetas prosadores, os sacerdotes, os pajés, os griôs e os ancestrais contavam as histórias, seus casos e guardavam-se lhes nas memórias, como faz sempre o povo cigano, que preserva suas tradições pelos contos e as danças também. Depois inventamos a escrita e ela grava no papel os signos, os quais aprendemos a decodificar e por meio dele apreendemos o que o passado nos legou e revelou.
Quando as ciganas desceram em Ipirá a mãe agradeceu à professora ter emprestado o livro à sua filha. A senhora reconheceu que a leitura enriquece, que ela adiciona à cultura oral a sabedoria sistematizada, que é necessária para a vida. E eu dei adeus no meu pensamento à ciganinha leitora, desejando: “Vai ciganinha, que todas as felicidades, que todos os bons ares lhe levem aos maravilhosos livros, que os encontrem sempre no seu caminho, que eles a encante sempre, que a transporte para novos mundos, que a transborde de sabedoria! Que seja em tudo feliz! Essa ciganinha merece, pois ama os livros e a leitura.
Rodison Roberto Santos.
Pelas estradas da Bahia. Em algum dia do final do ano de 2012.