O RABO DE LAGARTIXA

Sorrateiramente fui me aproximando e olhei bem dentro de seus olhos que me pareciam serem de vidro colorido e piscavam em demasia. Lentamente levantei o cabo de uma vassoura e assustando-se com o meu movimento ela graciosamente mexeu a cabeça, mas vendo-me tal qual um gigantesco monstro em sua frente ela disparou numa louca correria para o outro lado da parede. Foi ai que entrei em ação: fiz uma exímia pontaria, contei até três e... mandei-lhe o cabo da vassoura. Não deu outra: a fulana se desmontou no chão caindo lagartixa para um lado e o seu rabo para outro. Abaixei-me cauteloso ao lado do que dela sobrou e passei a sofrer com o seu sofrimento pois rabo e lagartixa pulavam saltitando e dançando a dança da morte. - Será mesmo que existe este ritual? - Perguntei-me, e a mim mesmo respondi: - já ouvi dizer que todo movimento que antecede a morte é uma dança. Será? - E prossegui com o meu monólogo: - vou dar uma paulada na cabeça dela e báu, báu. Voltei a levantar o cabo da vassoura e mirei bem na cabecinha, e logo resmunguei... - Desisto! - Falei abandonando tudo enquanto observava a loucura que acabara de fazer com aquela pobre sardanisca.

Meus olhos estavam esbugalhados de espanto diante daquela dantesca imagem. Dentro de minha casa ocorria uma cena macabra: um rabo sem lagartixa e uma lagartixa sem rabo. Ambos por mim violentamente amputados a violento golpe com um cabo de vassoura. Eles debatiam e se contorciam no chão em meio a um cenário de fatídica tentativa de homicídio. Enquanto isso a pobre vítima estava ali ao meu alcance, envergonhando-me por ter desrespeitado as Leis da Natureza. Senti ouvi-la me condenando aos berros de: - assassino, assassino, - mas lagartixa não fala. - Contentei-me com esse pormenor e voltei a mirar seus olhinhos com a nítida impressão de que uma pequenina lágrima corria em sua cara e isso me aterrorizou. - Onde tem um veterinário? Me perguntei entrando em desespero.

- O veterinário! O veterinário, por favor! É urgente. - Desci do carro gritando, e assim, avancei pela clínica adentro.

- Calma senhor, calma! - Ponderou-me, acalmando-me, uma gracioso jovem atendente da clínica, tentando com palavras diminuir o meu explícito pavor em querer salvar a vida daquele pequeno animal que eu levava dentro de uma caixa de sapatos. - Assassino! Assassino! - Era o que incessantemente eu imaginava ouvir de dentro da caixa. - O doutor já vem, - disse-me a bela jovem pela quinta vês enquanto cuidava de agendar seus serviços desembuchando-me perguntas para registrar no papel a tal ocorrência:

- Como é o nome do bicho? Inquiriu-me a linda jovem, com um maroto sorriso.

- Ela não tem nome. - Retruquei-lhe com voz áspera, sisudo, querendo por fim naquele ridículo.

- É caseira?

- Bom! . . Isso lá, ela é!

- Já foi vacinada?

- Não me encha o saco. - Sentindo-me como um idiota, assim interrompi o estúpido diálogo.

A bela moça, acostumada a lidar com gente e animais de todo tipo, começou a se encabular com minhas respostas. Foi ai que, misteriosamente, apareceu o tal doutor gritando: cadê o paciente? Onde está o animal? Me traga o bicho..

- Aqui dentro - falei mostrando-lhe a caixa de sapato no chão, e ele mandou-me entrar para o consultório. Após um visual exame ele voltou-se para sua auxiliar assim dizendo: - por favor Anália! Tire esse bicho da caixa e o coloque em um recipiente esterilizado, irei fazer um implante, ok? - E foi vestir suas luvas.

A jovem ao dar de cara com uma lagartixa e um rabo pulando sem parar, deu um grito de terror e, em pânico, saiu correndo apavorada, rua afora - Odeio lagartixa, odeio lagartixa, - era o que ela repetia incessantemente já com uma aparente palidez. Por pouco ela não desmaiou. E tome-lhe água açucarada.

A infeliz ovípara, assustando-se com os gritos da moça, também fugiu, e foi se esconder embaixo dos móveis, de forma a não ser mais achada.

Todas as buscas lhe foram em vão. Apenas o seu rabo permanecia vivo, saltitante e feliz na caixa

- Que farei com esse rabo?

- Enterre-o e não se preocupe. - disse-me o doutor, acrescentando. - Deixe a lagartixa em paz, pois outro rabo nascerá automaticamente no lugar do mutilado.

Foi ai que me lembrei de uma frase pichada no muro do cemitério de Camilópolis em Santo André-SP, onde lá se lia: "

" O NOSSO AMOR SÓ DEPENDE DA FLEXIBILIDADE DO RABO DA LAGARTIXA".

- Confesso que jamais entendi aquele recado e somente agora percebo que o tal pichador sabia mais do que eu, que, toda lagartixa tem seu rabo autorecostituível.

Fui ao fundo do quintal, cavei um buraco com o cabo da vassoura e falei: - "adeus rabo".

São Paulo – SP – Jan 2002.

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 24/03/2024
Reeditado em 24/03/2024
Código do texto: T8026907
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