Apelo

A imagem de relance no espelho. É assim que me vejo diante de você, assim como sou. Ninguém nunca explicou-me tão bem de mim quanto você. Tudo que julga da minha pessoa, faz jus a verdade. E diante de você, querido, não sei dizer mentiras. Tento, confesso, mas não consigo. Até porque, como você muito bem sabe, a minha face desmente os adjetivos e verbos ditos na intenção de ludibriar-lhe.

Sentada no sofá, toda estirada, ouvindo Mozart, uma cara de quem já está passada de sono... mas a preguiça me impedi de ir até a cama. Troco de cd. Coloco o som do Barão Vermelho:

“Sem paixão tanto faz, amor de irmão tá valendo mais... e num improviso da jazz nossas idéias se encontram... vamos ser amigos... enfrentar os perigos... não amargar nenhuma tensão..”, assim dizia a canção.

Escuto algo estranho que parecia vir do jardim da minha casa. Levanto-me com grande esforço para vencer o cansaço. Ligo os refletores externos. Assustada, observo o movimento pela janela. Ah, é só o Gandhi, meu gato, brincando na graminha do jardim. Vou até lá, no jardim, para trazê-lo para dentro de casa.

Volto para parte interna da casa. Entro no quarto, deito na cama e fico pensando na vida. Hiii... perdi o sono! Entro em contato com os adesivos florescentes no teto do meu quarto, aqueles que ganhei de você , lembra? Bem legais! Uma estrela, uma lua, um sol, os planetas, raios, todos ao estilo verdes-luminantes. E lá vem as minhas recordações em forma de una playa à la vida louca. Recordo-me exatamente de tudo: da sua prancha cor-de-rosa com um desenho tribal preto, das suas palhaçadas no jogo do vôlei com o pessoal do prédio, da sua gargalhada gostosa, dos nossos passeios de domingo no calçadão, do seu sotoque pernambucano e poderia citar tantas outras coisas.

Você surgiu na minha vida no momento em que eu fui residir no local que prova que nós dois, fazendo parte do povo pessoense, estamos localizados no ponto mais oriental das Américas. Embora que o “estamos” já não esteja tão coerente com a sua futura próxima realidade, pois você me disse que em breve fará uma longa e demorada viagem. Talvez nem haja retorno. Veja só que cenário perfeito: você, eu, e a Ponta do Seixas. Nada nos abatia. Éramos super-heróis do extremo oriental! O que melhor para nos representar além deste ponto turístico? Que me perdoe os subversivos ao esdruxulíssimo, mas se vocês, estimados senhores, nos tivessem visto... Diga-me agora mesmo, meu irreverente rapaz, o cenário não era dos mais fascinantes? Vamos, me responda oh, cara! Não deixe-me aqui falando sozinha.

Desisto de ficar perdida no mundo das minhas fantasias. Tento aliviar as ideais, para conseguir adormecer. Viro-me para o lado esquerdo da cama, puxando o travesseiro ao encontro da minha cabeça. Alguns minutos depois um foco luminoso reflete em meu rosto. Acalmem-se, leitores lacomantes! É apenas o meu celular no modo vibratório. Ora, será que já estou sonhando? E o pior é que não tem ninguém por perto para me dar um beliscão, daqueles que tira qualquer dúvida. Não, não, realmente, não dar para acreditar nisso! Olha, tenho que dizer que você é surpreendente mesmo. Imagina... receber uma ligação sua, justamente, quando estava pensando em você. Ah, nem precisava fazer essa cara de espanto. Há muito tempo que converso com ele usando um canal telepático. Não vou dar trela, a essa hora da madrugada, a ênfases dissimuladas. Porque eu muito bem sei que o poder da minha mente, anda numa perfeita sintonia com a dele desde o dia que ele se afastou, por assim dizer, quando já não havia motivo aparente.

Bom, agora que colocamos a prosa em dia, já fiquei por dentro de muitas coisas da sua nova vida. Você agora é um recém formado em administração de comércio exterior, que em breve irá tentar a vida fora do país. O tom da sua voz ficou mais firme, sabe? Deve ter sido a temporária patente de aspirante no NPOR que deixou-lhe, assim, um quase homem sério. Digo quase... porque pelo seu vocabulário, as gírias ainda presentes e esse seu jeito de conversar sem pedir atenção, fazem qualquer mero conhecedor do seu bom papo, ver que você não perdeu aquele ar de menino vadio. Nem o jeito malandro de quem sabe aproveitar a vida. E vejo também que ainda possui o pendor de ser bastante agradável. Ah, e a sua sensibilidade ainda continua aguçada, graças a Deus!

Mas que diabos! Às vezes você me parece tão incógnito, amigo colorido. Será que há cores ainda nessa história? Talvez, o fato é que a saudade sempre me vem preta e branca. Falta sempre um retoque de uma pintura viva. Antes existia algo parecido com os lupanares pintados em Herculano e Pompéia. E você insiste em surgir falando de seus festejos. Tudo bem... você sabe que topo, velho amigo de baladas. Embora que despedida... não sei! Sempre me parece tão vil. Egoísta! Este é o adjetivo que merece. Você me fala todas aquelas coisas ótimas, cita certas lembranças e depois vem com esse seu cinismo. Disse que está pensando em sumir?! Três horas da madrugada, e eu ainda me viro de um lado para outro na cama. Lembrando daquela época. Ainda mais depois dessa ligação...

Descobri uma coisa, meu muy hermano: Cabo Branco era mais bonita naquele nosso tom de amizade... colorida? Quem sabe... O píer da praia de Tambaú já não é tão interessante como antes, até coragem me falta para saltar dele (como isso me fazia bem, lembra?). Ninguém mais me fez ter vontade de tentar praticar o surf e jogar frescoboll. Os siris, tatuís, estrelas-do-mar, sargaços, corais, peixes, eu e até os coqueiros, acredite! Reclamam a sua ausência.

Aonde vai, nossa-amizade?

Quando foi mesmo a última vez que ocorreu o nosso encontro? Acaso está lembrado, meu surfista pernambucano? Porque eu me recordo muito bem, até suas últimas palavras: “Oh, lua da minha noite, ver se não me esquece porque eu jamais te esquecerei!... Lú, querida, tu sabe que nesse coração ferrado já ganhasse espaço, né? Te cuida menina...” E você falava isso num traje de enfermeira sexy, descompondo no seu corpo atlético: uma saia branca apertada nas suas pernas rijas e um tope branco com desenho de uma cruz vermelha, deixava a amostra sua barriga malhada e a sua tatuagem de aranha , tinha também uma máscara no rosto(tampando o nariz e a boca), e ainda uma bolsinha lelê, combinando com figurino. Ops, claro! Não posso deixar de mencionar o velho kit pirata: muito rum a base de pouca coca-cola debaixo do braço, para fechar, um copo descartável na mão. Primeira quinzena de fevereiro do ano de dois mil e cinco. No “Bloco das Virgens”, em pleno carnaval de Jampa. Um casual encontro, mas não me venha falar em destino!

Dei-lhe um abraço bastante expressivo. Disse-lhe que sentia muito sua falta. Zombei: “Você tá tão gostosa com essas vestes, minha bichona linda!”. E você me pediu que ficasse por perto. Falou dos seus sentimentos. Tentou um beijo... esquivei-me de encontro aos seus lábios. Disse que era melhor pararmos lá mesmo onde terminamos “nas antigas”... à la playa, lembra? Fique aí, com seu rum e seus amigos vagabundos, imaginei, mas algo dentro de mim gritava contra meu pensamento: “fica perto dele!”. E perdi você na multidão do bloco na avenida, ou melhor, perdi você naquele seu repertório: “É que, às vezes, Lua, preciso ‘fazer a minha mente’, isso me fortalece... por favor, me entenda!... Ó lá, Ralf perguntando por mim... já volto!”. Eu só queria cuidar de você, tirar você da estrada errada que seguia... mas você resistia com irritação a isso. Então veio o rodamoinho e me levou para bem longe de você.

Aonde vai, nossa-amizade?

Sinto falta daquele seu cheiro, um perfume tão bom, sei lá! .Ocorreu-me uma perda irreversível, caros amigos, perdi um vizinho mui louco. Quem o encontra e o traz de volta para mim? A recompensa será pronta! Edifício Lest Ville, Avenida Cabo Branco, S/N, apt. 302. Sempre que passo por lá, lembro de você... de uma boa turma de amigos, da geração saúde, do meu tempo do vôlei, da minha vida praiana, do luau havaiano e de todas as maravilhosas festinhas do condomínio. Mas o que mais marcou foi a sua falta, rapaz energizante!

Você... que ganhou a alcunha de “louco”, com tantas palhaçadas e irreverência, tal apelido até que lhe caiu muito bem. Agora, moradores do Lest Ville, testemunhas da nossa amizade, por favor, não me passe na cara o quanto ela, essa amizade, era colorida, com a irônica pergunta: “Lú, cadê o ‘seu louco’?”. Porque essa resposta pode ser mais complexa e perigosa do que milhares de perguntas. Passou a galope e disse adeus. E não me encham mais a paciência. Já não basta-lhes a minha perda?!

Informe-lhe, pois, rapaz da risada contagiante, que já está marcada a audiência. Levei o caso à justiça, muito em breve, você será intimado. Devo dizer que até haverá o júri popular, e ainda contará com a presença das minhas ilustres testemunhas do Lest Ville, por decreto-lei sentenciarão: “Declaro o réu culpado e condenado a ficar por essas terras, até a hora de sua morte.” Nesse momento todos se levantarão e gritarão a uma só voz: “Amém!”. Você não será pálio para minhas artimanhas, meu querido amigo. Pois se não impedir sua partida por via de decreto, irei ao Rio e invocarei as vibrações positivas da torcida flamenguista. Invocarei também as forças divinas. Tudo isso junto aos berros do meu coração aflito. Enfim, desesperadamente, apelarei a você: fique, por obséquio, homem da cabeça feita! Mas você, com sua pose imperiosa de campeão, ocupará o seu lugar no pódio, e responderá em alto e bom tom: “Espera, minha amiga, voltarei... tu sabes o quanto és importante em minha vida...não te afobes, moça bonita!”

Dane-se com suas falsas promessas! Acha mesmo que acreditarei em você, novamente, meu vadio rapaz? Logo você que me faz promessas fantasiado de travesti em plena Avenida Rui Carneiro. Você que depois de me ver chorar a sua falta, teve a desfaçatez de sugerir-me: “Vamos a bailar, chiquita?”. Ora, chega de alucinações! Durma de uma vez, menina desesperançada. Desprenda-se do que causa-lhe esta lastimável insônia.

Aonde vai, nossa-amizade?

Lá vai! Muito em breve irá, nossa-amizade, ampliar as fronteiras... não se sabe quando. Decerto não tardará.

Eu deveria desencanar, esquecer você e ir dormir. Mas por que eu iria querer isso?

Aonde vai, nossa-amizade?

Acabou de passar a galope e disse adeus.

E adeus também eu disse-lhe a falhar com a fala.

Dissemos adeus. Qualquer outra coisa dita depois disso, parecerá confusa. Acontece que eu não consigo afastar meu pensamento de você.

(Eu preciso ver você de novo, meu amigo!).

O efeito psicológico de uma perda pode ter grandes implicações. Cinco e meia da manhã, o sol invade a janela do meu quarto. E eu sinto que um golpe de punhal atinge meu coração.

Que fim terá, nossa-amizade?

Amanhã estarei de volta aos meus estudos e fora da insanidade.

Aguardarei, com paciência, o seu formidável regresso – essa quimera! Descanse em paz, nossa-amizade. E cuide-se bem!

Mas, espere! Por favor, não se vá agora que me tirou o sono.

Luana Zenaide
Enviado por Luana Zenaide em 24/03/2024
Código do texto: T8026733
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