Lugar de poesia é na calçada
Anteontem, dia mundial da poesia, nada fiz. Mas taí a sua maior função: ser um inutensílio. À parte disso, carrega em si o mundo inteiro. Todas as palavras não ditas. Mal ditas. Malditas. Todos os choros. Todas as risadas. Toda a inexatidão humana. Toda a incompreensão da vida. Toda a fantasia da cabeça. Toda a angústia. Todas as paixões. Tudo dá poesia. E tudo é da poesia.
Por falar nela, ontem foi aniversário de quem compôs o que toda a gente precisava ouvir — antes e agora — o Jorge que é seu próprio dragão. Viva Jorge Ben! Mais uma distância em minha vida. Já aceitei que, embora tenha visto o ônibus da turnê de Djavan passar por mim na parada de ônibus, eu não irei vê-lo. É meio depressivo não ter acesso à cultura. Não como eu gostaria. Ao lazer. Isso adoece as pessoas, é uma realidade, está comprovado. Pois eu, sem mais distinguir as barreiras entre cansaço e realidade, me vi completamente anestesiada diante daquela imagem. Uma pena que isso não entra no meu combo de estudante universitária que mora a um coração de distância. Também não verei Caetano, que é tão inacessível, sempre fugindo das cidades em que morei. “Se eu tivesse dinheiro”, pensamento que resume boa parte das minhas horas vagas, eu certamente fugiria para Salvador. Eu queria estar tão perto do palco a ponto de atrapalhá-lo. Eu queria ser o microfone. Não, eu seguraria o microfone. Eu seria uma dançarina contemporânea em perfomance exclusiva: sentada no palco só ouvindo e aplaudindo e vibrando e cantando. Não há nada melhor do que a demonstração. Detesto que me olhem por anos e não me digam nada. O que eu poderia dizer, exceto por longos e variados nãos? Se eu não posso, oras. Muitas vezes eu quero, sim. Detesto também os flertes virtuais cada vez mais vazios, mecânicos, massificados, falsos. Não me dê coraçõezinhos à toa, muito menos emojis de apaixonado seguido por absolutamente palavra alguma. Não há nada mais desestimulante do que a ausência da comunicação. Tudo pode ser trocado: palavras, olhares, figurinhas. Mais expressivo do que as figurinhas, a própria vida. Mas essa já está em desuso. Ninguém precisa viver se a vida está no Instagram. E, convenhamos, a vida do lado de fora não é “instagramável”. É só desagradável mesmo. Ai, o penso de sentir. Não, pior. O penso de ter que sentir! Esse é terrível. Mas eu ainda prefiro sofrer do que não sentir nada. Que desperdício seria. Entre falar e morrer, é melhor falar. De amor não se morre senão para germinar. Mas acho que todos andam morrendo de qualquer coisa. Creio que estejam mudos também. Apáticos. Sem órgão de sentir.
Em mais um episódio de minha língua sendo paga, jamais imaginei ter gostado da companhia de um estranho. Além de veículos de cantores famosos, a parada de ônibus é também lugar de encheção de saco e de importunação para o meu lado. Mas recentemente conheci alguém que, ao final da conversa, me disse:” você é bem doidinha, né?”. Eu me entristeci. “Mas é um elogio”, ele disse. Sorri de volta.
Na verdade, eu sempre considerei o fora do normal um elogio e tanto. Não sei o que me deu. Talvez eu tenha lembrado de que quase ninguém mais concorda com isso. Eu acho. Nunca mais o vi. É muito raro encontrar alguém com o mesmo senso de humor que o seu, pelo menos naquele momento, ainda mais quando se é meio nonsense e autodepreciativo. Mas é charme, uma persona. Não que convença, não que atraia, não que seduza. Afinal, não é o objetivo. É quase minha arma. Meu mecanismo de defesa com sistema de recompensa: o divertimento do outro. O que eu não esperava é que eu receberia o mesmo. Estranhíssimo, mas surpreendentemente bom. Não lembro de sua feição. Lembro da voz. Do cabelo engraçado. Só não gostei de suas perguntas de médico. Mas ele é quase um. Eu que não sou paciente.