Estreito de Magalhães

1991, Agosto

À porta do departamento de Estágios da Escola Técnica, uma modesta aglomeração de terceiranistas do curso de mecânica jogava conversa fora enquanto um outro grupo lotava o interior do recinto preenchendo formulários e consultando “fichas de oportunidades” disponibilizadas por empresas,

Atualmente, em qualquer educandário do gênero, estes departamentos estão longe de serem concorridos como então, uma vez que os painéis de divulgação e as fichas de inscrição são virtuais em sua totalidade, e assim todo o processo de captação, candidatura e seleção é procedido via internet - à exceção de etapas derradeiras desta última.

N. Romano surgiu então com aquele sorriso de porta aviões que lhe expandia os gestos sempre que se descobria muito entusiasmado por um evento ou uma ideia. O sorriso largo, e a mão no interior da mochila, de onde tirou, sob o olhar curioso dos colegas, uma caixa retangular de papelão.

- Comprei uma HP!

Num Brasil em que a Internet havia sequer ingressado na era da “pedra lascada”, a "HP" era uma calculadora científica da Hewlet-Packard, que permitia programar funções matemáticas e assim solucionar equações, traçar gráficos, realizar operações com expressões literais, "et coetera". Pequena apoteose tecnológica de muita valia para estudantes de engenharia e de cursos técnicos industriais naqueles tempos. Desnecessário dizer que o recurso era custoso, e mesmo entre os colegas mais endinheirados era raro ver um modelo daquele.

Romano contava ali 18 Primaveras. Mestiço, pai italiano, operário de manutenção eletrica. A mãe, “dona de casa”, criava não sem dificuldade os 4 filhos, após o marido morrer antes que N. completasse 10 anos de idade. Havendo estudado em escola pública por todo o Ensino Fundamental, prestou concurso para a Escola Técnica e aos 15 anos era admitido na instituição para a partida num progressivo (e nem por isso menos brilhante) processo de mudança de vida para si - e sua família.

Ele sabia muito bem onde estava, e para onde queria ir… Sobretudo, era perfeitamente cônscio da carga de sacrifícios e abstenções que deveria consumir para que o “deslocamento” se desse o mais solidamente possivel. Enfim, não tinha dúvidas de que o “modal de transporte” mais seguro para a jornada era a…Educação.

- Gastei um mês inteiro da minha bolsa de estágio, mas valeu! Olhem isso aqui!

E mostrava uma senóide desenhada na tela do aparelho, após haver programado a respectiva função.

Ele foi o primeiro da turma a conseguir estágio remunerado (numa empresa de prestação de serviços públicos de eletricidade). “Um salário mínimo, mais ticket refeição & vale-transporte”. Por ocasião de seu primeiro pagamento, o Romano vestia a camiseta branca surrada de sempre, rigorosamente "encaixada" por dentro da calça jeans desbotada e puída (isso hoje já é "estilo", e custa caro); o mesmo par de sapatos sociais bem engraxados desde o 1o ano, a velha mochila muito maltratada, e uma calculadora científica caríssima, que nenhum dos colegas possuía até então...

Frequentava ativamente uma igreja evangélica pentecostal.

Ao fim do curso técnico, Romano já havia estagiado em uma multinacional, e terminou por ser contratado como Técnico Industrial no departamento de controle de qualidade em grande empresa do setor de processamento de plásticos.

No ano seguinte, prestou vestibular para Engenharia e foi classificado para uma das mais reputadas universidades federais do país. Era já casado e prestes a ser pai de uma filhinha. Impossivel, portanto, prosseguir com os estudos de graduação na grade horária disponível (diurna) do curso .

Mais um ano adiante, e o Romano foi aprovado no vestibular para o curso noturno de Matemática em outra prestigiada universidade do Estado. Saiu da empresa de processamento de plásticos, e foi trabalhar como líder de setor fabril na multi nacional em que estagiara anos antes. Formou-se, cursou pós graduação em "negócios & gestão da qualidade de processos", e acabou migrando para o ramo da telefonia.

Com pouco tempo de trabalho numa das empresas do segmento, foi escolhido para dirigir a implantação de uma unidade no Nordeste. Passou anos por lá, retornou com mais um filho, e prosseguiu com a carreira de sucesso no seu Estado Natal.

Por fim, aceitou a proposta para cargo de direção em empresa concorrente, e com a família aumentada de uma caçula, estabeleceu-se num condomínio próximo ao novo local de trabalho, passando a dividir a semana entre este posto e outro, sempre numa capital do Sudeste, alternadamente.

Os domingos, como em todos os anos, eram vívidos com satisfação em companhia da esposa e 3 filhos, na Igreja Evangélica Presbiteriana do bairro.

(***)

2022, Setembro

Sábado. Debruçado na varanda do apartamento na av Sernambetiba, bermuda e camiseta, xícara de café na mão, o Romano lembrava dos 33 anos decorridos até então, desde o primeiro dia como aluno no pátio da Escola Técnica - ao tempo em que dividia com mãe, irmão caçula, irmã mais velha, cunhado e dois sobrinhos, um quarto-e-sala (banheiro do lado de fora, o fogão disputando espaço com a TV e o sofá) em Magalhães Bastos.

Olhava para a rua, os veículos embaixo…via a faixa de areia da praia, a água do mar se confundindo com o céu na linha perdida do horizonte…lembrava com gosto da primogênita, já graduada, cursando pós na Europa.

Subitamente se deu conta de que havia descido na estação do seu destino. Nem antes nem depois. Agora.

proflribeiro
Enviado por proflribeiro em 23/03/2024
Reeditado em 24/03/2024
Código do texto: T8026040
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