O Sensitivo
Julio Arthur Marques Nepomuceno (*)
Bartiraguá era uma cidade tranquila do interior paulista no início dos anos 50. Poucas coisas agitavam a vida da cidade: festa do padroeiro, carnaval e principalmente campanhas políticas. A política, por sinal, era bastante acirrada e agressiva. Dois coronéis disputavam o controle político da cidade, e seus seguidores se enfrentavam em brigas nos comícios e nos bares locais. Por baixo dos panos, os dois até se entendiam. A rixa maior era entre os cabos eleitorais.
Mas havia outro acontecimento que tirava a paz de Bartiraguá. A cidade era cortada pelo Rio Carnaíba, e em não raras ocasiões, aconteciam afogamentos. Às vezes, por causa do descuido de algum pescador, banhistas que se aventuravam nas águas do rio, alguns casos de suicídio, e em casos raros, crime.
Quando acontecia algum afogamento, as margens do rio ficavam cheias de gente, esperando o corpo ser encontrado. Era uma festa, tinha até um vendedor de empadas que passava com sua cesta: - olha a empadinha de palmito, de frango, de carne...
Vinham bombeiros de uma cidade próxima, mergulhadores, e voluntários, que às vezes escapavam por pouco do mesmo destino da vítima. A correnteza levava o corpo que ficava enroscado em algum obstáculo no fundo do rio. Costumava ser demorado para encontrar a vítima, e a cidade ficava em polvorosa até que o cadáver fosse localizado.
Mas Silvano, homem maduro, biscateiro, morador antigo da cidade, percebeu que podia ajudar nessas situações. Nem ele sabia como. Percorria as margens do rio para cima e para baixo, voltava, ia de novo, e chamava os mergulhadores: - É aqui!, dizia ele. E os mergulhadores achavam o corpo no lugar indicado por Silvano.
Quando acontecia um afogamento, a polícia da cidade ia até a casa do Silvano pedir a sua ajuda. E lá ia ele, tranquilo e calmo, fumando seu cigarro de palha, com toda paciência do mundo, fazer as suas caminhadas pelas margens do rio até que algum fator desconhecido lhe apontava o lugar onde estava o corpo do afogado.
Silvano tornou-se amigo do Dr. Rabieri, delegado de polícia da cidade. Espírita, pessoa muito querida que anos depois tornou-se prefeito de Bartiraguá. Silvano era católico, mas afastou-se da igreja depois de ser advertido pelo padre local em função das suas buscas aos defuntos. - É coisa do diabo, dizia o prelado.
Tornou-se católico não praticante e não acreditava que o seu talento para localizar os cadáveres tivesse alguma ligação com o mundo espiritual. – Nem eu sei como acontece, explicava. Eu vou andando, volto, vou de novo, e alguma coisa dentro de mim me faz pensar que está ali. Daí eu chamo os mergulhadores, e pimba! Lá está o cadáver.
A habilidade de Silvano repercutiu até na Câmara Municipal. Um vereador propôs que, para cada defunto encontrado por Silvano, o Poder Público lhe pagasse uma determinada quantia. O projeto só não foi votado porque o próprio Silvano interferiu, dizendo que não queria isso, que fazia por amor às famílias que estavam desesperadas, aguardando o encontro do corpo do ente querido.
Silvano só aceitava um sanduíche de pão com mortadela e uma garrafa de Tubaína que o Dr. Rabieri. bancava sempre que o corpo era encontrado. Juntos dividiam o lanche. Sentavam-se à mesa de um botequim e conversavam longamente sobre a vida. O povo gostava de comentar a amizade dos dois: - O Dr. Rabieri paga para o Silvano um sanduíche de morta...dela quando ele encontra uma defunta, e um sanduíche de presunto quando o cadáver é de homem, diziam os maldosos. Maledicência, apenas. O que os dois gostavam mesmo era de uma boa prosa.
Apesar da tranquilidade de Bartiraguá, o Dr. Rabieri não era de ferro. Depois de cinco anos sem tirar férias, resolveu usufruir uns dias para passear com a família em Poços de Caldas. - Férias merecidas, falava o Dr. Rabieri. – Férias de quê? Ele não tem serviço aqui na cidade, diziam outros, maldosamente.
Para substituir o Dr. Rabieri na delegacia, foi chamado o Carlão, um velho policial da cidade de Reluz, não muito longe dali. Carlão era o coringa dos delegados daquela região. Sempre que um deles tirava férias, ele era escalado como interino. Fruto de sua filiação ao partido do governador e de algumas amizades na política. Estava próximo de se aposentar, quando foi chamado em Bartiraguá para mais uma interinidade.
Carlão quase morreu de tédio. A cidade era tranquila demais, não era época de eleição, nem de festa do padroeiro, e o interino aproveitava para tirar um cochilo durante o expediente. À noite, gostava de um carteado, e às vezes passava a madrugada jogando. - Ninguém é de ferro, falava, preciso descansar durante o dia.
Mas um incidente quebrou a rotina de Bartiraguá. Outro caso de afogamento. Uns diziam que era um pescador, arrastado pela correnteza, outros falavam em suicídio.
Logo, Silvano foi acionado. Um policial passou em sua casa para pedir sua ajuda. E lá foi ele, indo e vindo pelas margens do rio. O interino olhava tudo aquilo com curiosidade. - O que esse maluco está fazendo aqui?, pensava.
Não demorou muito e Silvano apontou o lugar para os mergulhadores. Lá estava o cadáver, como ele tinha vaticinado. Deu trabalho para ser puxado até a margem, enquanto a família se desesperava.
Foi quando Carlão, o interino, fez aquilo que ninguém esperava. Chegou perto de Silvano e, investido da autoridade do cargo, deu-lhe voz de prisão:
-Teje preso!!!
Indignação geral, entre os policiais e o povo que estava acompanhando os fatos. – Seo Carlão, ele é assim mesmo, ele sempre descobre cadáveres aqui no rio.
-Teje preso!!! – Assassino! quantos você já matou?
O padre da cidade foi interceder pelo Silvano, mas não adiantou. A Loja Maçônica convocou uma reunião extraordinária, e lançou um manifesto pedindo a soltura de Silvano. O Sindicato dos tecelões não deixou por menos, e ameaçou deflagrar uma greve.
Mas não adiantou. Silvano estava preso. O povo já estava cercando a delegacia para exigir a soltura de Silvano. Os policiais estavam revoltados com o chefe. Até que um deles teve uma ideia. –Vamos ligar para o Dr. Rabieri em Poços de Caldas...
E assim fizeram. Foi um tal de procurar em que hotel estava o Dr. Rabieri. Demorou mais de duas horas para encontrar o homem.
- Dr. Rabieri, teve mais um afogamento aqui, e o Silvano encontrou o corpo...
- Puxa, que bom que tenha encontrado. O Silvano não falha!
- Bom nada, doutor! O Carlão deu voz de prisão para ele, dizendo que ele é o assassino.
- Interino é uma merda, mesmo! Chame ele no telefone pra mim.
E lá foi o interino conversar com o titular:
- Dr. Rabieri, prendi um assassino perigoso aqui em sua cidade. Ele apontou com precisão o lugar onde estava o corpo do afogado. E me disseram que ele já fez isso outras vezes.
- Pare com isso, sua anta! Burro! Animal! O Silvano é meu amigo, sua besta! É sensitivo. Está sempre ajudando a gente a encontrar os corpos dos afogados. Solta ele, senão eu vou aí e prendo você!
Silvano foi colocado em liberdade, aclamado pelo povo, que festejou com o tradicional sanduíche de mortadela e tubaína. O padre convocou os fiéis para uma missa em ação de graças pela liberdade do Silvano.
A interinidade de Carlão acabou, e ele voltou para sua pequena cidade. Logo depois, pediu aposentadoria. – Estão acontecendo coisas muito estranhas, que eu nunca vi na minha vida, comentou. Vou parar por aqui antes que eu fique louco.
Rabieri voltou ao cargo, sempre contando com a ajuda de Silvano quando havia um afogamento. E os sanduíches de mortadela ou presunto regados a tubaína continuaram por muito tempo.
Quando voltei para Bartiraguá, para visitar a minha família, perguntei do Silvano.
– Ih, Julio, ele morreu...
- Puxa, coitado, estava doente?
- Que nada. Caiu no rio. E seu corpo nunca foi encontrado...
(*) Julio Arthur Marques Nepomuceno sou eu
Amparo, 22.8.2024
Obs. – História verídica, porém com nomes fictícios