O DESAFETO

- Jadilson, o caso é o seguinte: Estou pensando em fazer uma brincadeira na passagem do ano na minha casa.

- Opa! Isso é um convite?

Eu não ia te convidar. Por Deus do céu, eu não ia de convidar. Não é nada pessoal. Nós somos amigos. Acontece que eu também sou amigo do seu desafeto e já o convidei. Por favor não me leve a mal.

- Mas então porque está me falando isso?

- As meninas falaram tanto, insistiram tanto, que não teve outro jeito. E também, a sua última festa rendeu um bocado. Enfim, estou te convidando mas só te peço uma coisa: Respeita a minha casa. Respeita a minha família. Só isso que eu te peço. Posso contar com você?

- Que é isso Inaldo? Isso lá é coisa que se diga? Sempre respeitei todo mundo. Talvez eu nem vá em sua festa. Mas, se eu for, é claro que respeito a sua casa. Tenho educação pra entrar e sair de qualquer ambiente. E outra coisa: Por mim aquela treta já acabou faz tempo.

- Então estamos conversados.

E assim, no dia 31/12/1979 lá estávamos todos nós, trabalhadores da gloriosa “Açúcar União” nos congraçando na casa de nosso amigo. A festa estava animada. A bebida e a carne eram fartas e o som rolava solto. Bee Gees, Marvin Gaye, Village People e mais um bocado de sucesso daquela época de ouro da MPB.

Em pouco tempo eu já havia conhecido a família inteira do Inaldo. Entendia que estava fazendo boa figura na festa. Olhei de relance e lá estava o meu desafeto, isolado, desambientado e enchendo o caneco feito um renegado. Meu desafeto! Nem sei bem como a coisa chegou nesse ponto. Ele era preto, um pouco mais alto que eu e tínhamos a mesma idade. Poderia se dizer que, se não éramos amigos, pelo menos bons colegas de trabalho nós fomos por um período. Não sei dizer o que tenha feito que o desagradasse tanto, mas de uns tempos, começou a me hostilizar, a me desafiar abertamente até que a situação ficou insustentável. Um certo dia ele me acompanhou até dentro da estação da Moóca, me dizendo uma série de indignidades. Cheguei ao limite. Usei uma tática que sempre havia funcionado em situações semelhantes: Deixei morrer a natureza do pacato David Bruce Banner até que uma criatura pavorosa brotou dentro de mim. Parti pra cima com socos e pontapés em uma fúria cega. Mas, ele era ladino. Tinha certa agilidade de pugilista. Conteve a minha explosão inicial. Aparou os golpes, saiu na ginga e eu não o acertei de jeito. E ainda por desaforo me pegou de guarda baixa. Quando a segurança chegou ele conseguiu escapulir pela catraca. Passei noites em claro imaginando uma revanche. Ele caindo e eu deitando-lhe o braço até sangrar os nós dos dedos. Em outra versão, nós dois caíamos embolados no leito dos trilhos mas eu conseguia sair incólume, enquanto o “Mangaratiba” passava devorando os trilhos e soltando um apito infernal. Em todas versões possíveis e imagináveis eu acaba com ele na porrada sem dó nem piedade.

Logo depois dos fogos da meia-noite, quando dei fé, ele estava ao pé de mim.

- Preciso falar com você. Disse ele com vós pastosa.

- Pode falar. Estou ouvindo. Disse a ele em tom amistoso, ainda sob o clima do momento e efeito do álcool.

- Lá fora. Disse ele.

Mal saímos e ele tentou me acertar um golpe que passou no vácuo. Desequilibrou-se, e por pouco não caiu.

Nem pensei em revidar. E mesmo que pensasse, lá estava o Inaldo interposto entre nós. Pronto! Estava armado o fuá.

- Puxa vida Jadilson. Eu não te pedi? Eu não insisti com você? Eu não implorei? E ali, no meio do povo, me passou uma descompostura daquelas.

Assim, pego de surpresa e pelo efeito do álcool, tive um colapso existencial. Fiz um desabafo e falei umas coisas pro Inaldo durante uma crise de choro. A bebida mexe mesmo com as emoções.

Mas nessa altura, uma moça, prima do Inaldo, devia ter uns 25 anos, estudante de Psicologia na PUC, me acolheu e me conteve. A acadêmica me conduziu até um desnível da calçada onde conversamos por horas. Ela era sensível. Dava para ver. O rumo da prosa era este:

Não importa que você não tenha família. Não importa o passado. Você tem apenas 18 anos. A vida tá só começando. Retome os seus estudos. Aproveite as oportunidades. Deixe o seu empregador ver as suas qualidades. Procure se qualificar. Maneire nas bebidas. E principalmente, não se envolva com essas sirigaitas do trabalho. A certa altura ela me envolveu em seus braços. Um abraço bem fraterno. A atmosfera era propícia. E assim, abraçados, me disse ainda uma porção de coisas, de uma forma tão leve e tão suave que faria com que um suicida descesse da ponte e abraçasse a vida. E assim, passou a minha crise. Voltei para a festa com outro alento. Não passei nem do portão.

- Puxa vida Jadilson! Parece que eu tava até adivinhando. Olha, se arrependimento matasse… O que você está pensando, cara? Como se já não bastasse o bafafá, ainda por cima esse atrevimento? Você estava dando em cima em minha prima? A minha prima está noiva, entendeu? Vai se casar em agosto. A minha prima não é para o seu bico. Tudo o que eu te pedi, pelo visto, não valeu de nada. Você é ainda pior do que imaginei.

- Olha, quer saber Inaldo? Vá às favas, você e a porcaria da sua festa.

Disse isso e saí, chutando o balde. Caminhei do alto da Moóca até o Pari. Meio de madrugada, Meio embriagado, meio sóbrio, meio triste, meio vivo, meio morto, meio por instinto, encontrando pela frente bêbados, meliantes, criaturas da noite e toda sorte de livusias sociais. Nem sei como cheguei ao meu destino: Era o ano de 1980, da graça de nosso Senhor, me dando as suas boas vindas de uma forma bem peculiar.

JADILSON
Enviado por JADILSON em 22/03/2024
Reeditado em 27/06/2024
Código do texto: T8025288
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