MINEIRICES NA SEMANA SANTA
A poeira suspensa no ar tinha uma causa. Senhoras e mocinhas com suas vassouras de alecrim do campo varriam a porta da igrejinha. A semana santa estava às vésperas. Entre varridas no vai e vem das vassouras indagavam entre si, quem seria o missionário daquele ano a animar os festejos, as procissões, as caminhadas penitenciais e demais eventos da intensa semana de fé. Na comunidade, às margens do Rio Pará, todos os anos se ajuntavam moradores dos arredores. O trabalho na roça era interrompido, carros de bois chegavam com latas de mantimentos, gordura, queijo, cachaça para sábado de aleluia. Famílias vinham completas, pai mãe crianças e mocinhas casadoiras cheias de piedade e olhares curiosos. Tia Marta arrumou seu marido no sábado da aleluia, depois de namoriscarem olhando-se em cada procissão, via-sacra e atos paralitúrgicos. Ouvia essa história desde menininha. “Quem sabe não arrumo o meu!”, pensava Dorinha com seus botões e sua medalhinha de Santo Antônio na idade das ilusões.
As casas recebiam faxina, suas janelas abriam-se a luz e novos ares. Era sábado das Dores. Todos tomavam banho, inclusive os cachorros. Tinha terço em veneração a Nossa Senhora das Dores na pequena Capela da Imaculada Conceição no sábado a noite. Após o terço comadres tricotavam no largo da Igrejinha. E os homens se reviam entre caçoadas e goles de pinga escondidos no sábado que antecedia Ramos.
No dia seguinte o sol nascia com os aromas da laranjeira, do alecrim, da palmeira, do manjericão da alfavaca e outros ramos que depois da procissão e benção dos mesmos, passavam a ter poderes mágicos contra maleitas e “má loiados” Era domingo de reza, procissão e via sacra de leitura comprida do evangelho, de gritar como povo: crucifica-o! Crucifica-o! A meninada achava graça e eram os que mais gritavam com entusiasmo.
A semana era recheada de quitanda boa, de tempo ocioso, de reza que só se rezava uma vez no ano. Não faltavam penitenciais caminhadas antes do sol nascer. UM dia com terço outro com via sacra. Iam para serra, mina d’agua ou no alto do cruzeiro. Meditando na ida, tricotando na volta. A maioria mulheres, poucos homens e muitas crianças. Era programa certo de brincadeiras, volta e meia cortadas por algum puxão de orelha da mãe, avó ou tia. A matraca cantava seu canto penitencial convidando ao recolhimento e reflexão.
Nas noites da semana santa distribuíam as procissões com as imagens de tamanho natural, Jesus Senhor dos Passos e Maria Dolorosa, João Evangelista as vezes. Mulheres carregavam as imagens de Maria, os Homens de Jesus. Na segunda levavam Jesus ao pretório e Sebastião, piedoso e letrado senhor, líder na comunidade, fazia seu sermão entusiasmado, do ato de lavar as mãos como Pilatos, da culpa dos inocentes como Jesus. Seu entusiasmo enchia os corações de contrição, emoção e a outros de risos por seus movimentos mussolínicos.
As procissões, realizadas em duas alas, precedidas pelos tocheiros e o cruciferário eram muito concorridas, um misto de gente piedosas a rezar, cantar e andar descalços. Tinham as irmandades em alas próprias, com seus estandartes e os irmãos e irmãs com suas faixas e medalhas distintivas. Mas também tinha namoricos, olhares de malícia e carícia entre os solteiros e viúvos, e muitos homens e mulheres negociando terra, porco e galinha.
Na terça santa tinha terço e procissão com a Virgem Dolorosa com seu resplendor de prata e punhal cravado no peito. Representava Maria pelas vielas de Jerusalém aflita a procura de seu filho. Tinha sempre um menino a dizer para mãe que N. Sra. parecia com ela. Mas não faltava também quem dela tivesse medo com seu manto roxo e olhar tristonho. Mas medo mesmo dava na meninada toda era a imagem do Senhor dos Passos. Olhos grandes, rosto ensanguentado com coroa e uma cabelereira despenteada.
Faltava padre, quando podiam tinha lá um missionário ou seminarista a animar os festejos e atos religiosos. Certa vez na quarta santa, apareceu por lá meio que de para quedas um missionário estrangeiro. No que pediram veementemente que fizesse para o povo um sermão bonito, que emocionasse, do encontro de Jesus e Maria na via crucis. Sem muito contato com aquele tipo de cultura, mal orientado que fora por um colega brasileiro, fez um de deixar marcas indeléveis. Que até hoje o povo repete entre risos comedidos e gargalhadas nada pudicas. “Coitadinha da Maria, coitadinho da seu filhinho. Todo mal cuidado, todo maltrapilho, todo arranhado, parece que brigou com os gatos!”
Na quinta tem padre que vem celebrar a tarde uma missa as pressas, agenda cheia. Sapeca ali suas obrigações que ninguém mais pode fazê-lo. Atende um outro em confissão e foge antes do sol se por no lombo de seu jumento com outro ao lado com os apetrechos da vida sacerdotal. Segue seu caminho noutra capela, noutras paragens. Mas não sem antes de um farto café, dos quais uns e outros, principalmente a meninada, fartam-se juntos de biscoitos, broas e bolos oferecidos ao vigário.
A noite fazem lá um tetro na porta da capelinha, um fiel com ares de Jesus lava os pés de doze, entre jovens e senhores, a representar os apóstolos. Gésus tivera a sina de um nome que lhe valeu por muitos anos o papel de Cristo nos atos da semana santana. Quinta era dia de seus murmúrios. Beijava como manda a tradição, os pés que de alguns, nada asseados dava-lhe reboliços no estomago. Mas era pensar em reclamar, nas vésperas dos eventos, que sua avó América, piedosa octogenária, e que mantinha o santo temor das coisas da religião, vinha-lhe corrigir a fala nada piedosa. “_Meu neto, não diga uma coisa dessa, Deus castiga. Deixe de ser orgulhoso. É preciso ser manso e humilde de coração nessas horas. “
Na sexta feira, o mais denso dia da semana, envolto em mistério, respeito e fé, sem contar as crendices. Os currais leiteiros tinham mais gente que a via-sacra da madrugada neste dia. Retireiros tiravam o dia como santo de guarda. E o leite das vacas era gratuito. Muitos se fartavam, faziam arroz doce, doce deleite e outras coisas mais.
Nesse dia, muitas senhoras não varriam a casa, não comiam carne nem usavam faca. Cortavam a unha para prevenir de dor de garganta ao longo do ano. Tampavam os santos, os espelhos e guardavam o silencio. Alguém mais espevitado, que ousasse levantar a voz por uma empolgação que fosse, era logo sufocado pela interjeição do silêncio: “_Shiuuuu!, hoje é Sexta-feira da Paixão.”
Na proscissão do enterro, a mais concorida delas as alas eram enormes e tinha sermão comprido das sete palavras. Tinha os figurantes da história da salvação. De Adão e Eva até João Batista e outros personagens do tempo de Jesus. “Quem será que será o Adão desse ano? Sempre tinha um a perguntar. Esse cristão era o que mais penitenciava-se visto que só usava uma tanga de folhagem na noite fria da Paixão com sereno e friagem do Rio Pará.
Enfim o sábado da Aleluia. Era dia da desforra. O jejum de quarenta dias era quebrado, seja de doce, de cigarro, de cachaça ou de falar mal dos outros. Ébrios sequestravam folhagens e outros pertences da casa. Os donos para requerem, tinham que pagar. O montante de dinheiro dos sequestros era convertido em bebidas e comidas, mais as primeiras que as segundas, para longa farra nas ruas.
Concluídas com a malhação do Judas ou o almoço santo da páscoa. Hora de volta pra roça no carro de boi.