Conversa no botequim: mulher bonita, e futebol, e Bolsonaro, e Cleópatra, e cinema, e literatura, e...

- É hoje! É hoje! Recebi a grana pelo trabalho que...

- Então, zé, pague cerveja para todo mundo! O nosso amigo é um homem-de-Deus! Você é o meu melhor amigo, quatro-olho.

- Desde quando?!

- Desde o momento em que você, entrando, aqui, neste escritório cujo acesso é exclusivamente restrito a intelectuais eruditos diplomados pelas melhores e mais prestigiadas universidades do mundo global e universal, disse que recebeu a grana, das mãos de não sei quem, por um...

- Eu sou o melhor amigo desse cara! O melhor! Sou, ou não sou?!

- Vade retro, satanás!

- Satanás peçonhento! Coisa-ruim! Bicho-do-mato! Cramunhão! Besta-do-inferno! Aleluia, irmãos! Livre-nos, Senhor, desse diabo do Apocalipse! Salvem-nos, São Jorge e Nossa Senhora!

- Desde quando tu sabes rezar?!

- Desde que abandonei as fraldas, a chupeta e a mamadeira.

- E quando foi?

- Na semana passada.

- Puxa! Você é de um precoce aprimoramento cognitivo e intelectual.

- Falais tal qual um doutor.

- Doutor de quê?! O tipo, esse zé-mané, pé-de-alface, é um analfabeto.

- Analfabeto, eu?! Já aprendi o abecedário.

- E prendeste o dromedário?!

- Uma vez a Cleópatra foi até Lilipute, de dromedário, a cavalo. E o Nero, um camelo eqüino, seu animal de estimação, uma vez a levou a passeio ao Pantanal.

- Nosso time, hoje, arrebentará a boca do balão!

- Será?! Sei não! Não 'tó com essa confiança toda, não.

- O nosso bebum favorito 'tá gamado na Cleópatra.

- Vejam, cavalheiros solitários, o piteuzinho que está a passar no outro lado da rua. Que maravilha! Deus é grande! Deus existe! Deus existe!

- Não sou de acreditar em Deus, mas sempre que vejo um pedaço-de-mal-caminho convenço-me de que o diabo existe.

- É enfermeira... Ou médica.

- Enfermeira. Enfermeira. Médica bonita não existe.

- Não?! E a filha da dona Margareth?

- Ela é a exceção que confirma a régua.

- Regra, doutor. Regra.

- Arre égua!

- Desfila, a princesa. É de matar do coração a...

- Quero ter um motivo para ir ao pronto-socorro daqui a pouco. Que alguém me acerte com a cadeira a cabeça. Quem se dispõe a me fazer esta boa ação?!

- Se pagar bem...

- Uma pancada bem dada, com força suficiente para abrir-me um corte de uns cinco centímetros de ponta a ponta, suficiente para tirar-me uma boa quantidade de sangue...

- Dois litros 'tá bom?!

- Um metro 'tá de bom tamanho.

- Um metro de comprimento, um metro quadrado, ou um metro cúbico?

- Um metro hexagonal.

- Um metro líquido.

- Vem cá, ô, cambada... Bonita é a moça, mas... Podemos admirá-la enquanto falamos de um assunto sério, não podemos?! Então, o que...

- E mulher bonita não é um assunto sério, ô, estrupício?!

- A Cleópatra é bonita. Um peixão! Supimpa de tão bonita. Parece, até, um bife de alcatra.

- Eita!

- É hoje! Deixemos... Olha... Vocês souberam da besteira do governo, não souberam?!

- Qual delas?! São tantas...

- O governo 'tá indo bem.

- Bem o governo está indo; já o Brasil...

- Está melhor do que no governo do Bolsonaro.

- Ah! Não 'tá, mesmo.

- Cá entre nós, o Bolsonaro falou, e falou, e falou, e ficou na conversa. Falou, e não disse. Ele é um chove-não-molha. Disse que arrebentaria a boca do balão, mas ficou de... Não atou, nem desatou, o bandido.

- Não entendo por que vocês elogiam tanto aquele cara.

- Queríeis que ele fizesse o quê?

- Pusesse Brasília no chão. Reduzisse-a a ruínas. O Mito é amigo do Trâmpo, não é?! Então, que lhe telefonasse, e dissesse-lhe: "Meu amigo Trâmpo, vós me emprestais uma bomba atômica?! Uma só?! Quero usá-la para pôr abaixo uns prédios horríveis que o Juscelino mandou construírem aqui em Brasília. Prometo que a devolverei para vós, Laranjão. Vóis sois gente boa. Sois o homem mais poderoso do mundo, mas a minha patroa é mais bonita do que a vossa. Taoquei?!"

- Ah! Não é, mesmo. É gata, mas a do Trâmpo é mais.

- A minha muié é a mais bonita. Taoquei?!

- Se o Mito falar para o Trâmpo que a Michelle é mais bonita do que a Melania, ele acerta-lhe a cabeça com uma bomba atômica.

- Quem acerta a cabeça de quem com uma bomba atômica?

- O Trâmpo a do Mito.

- Bonita, bonita, é a Mulher-Maravilha.

- Mulher bonita, que põe no chinelo a do Biroliro, a do Trump e a do Super-Homem, é a Roberta Close.

- Eita!

- Esta é para casar.

- Casar?! Casar, caso com a Cleópatra, caso ninguém se intrometa no meu caso com ela.

- Eita!

- Vocês acham que o Bolsomito tinha poder para chegar lá, lá aonde ele queria ir, e bater no peito, e berrar: "Agora quem manda aqui sou eu, bando de melecas!"? Não sejamos ingênuos. Ora, não nasci ontem... O buraco é mais embaixo.

- Sei, não... Acredito que ele podia ter feito mais do que fez.

- O Mito não é um messias. Vocês quatro o idolatram. Deixemos...

- Idolatro-o o caramba! O cara é bão! Foi um bom presidente.

- Foi, não. Errou feio na epidemia, e na Amazônia. Ele descuidou da educação. E disse muita besteira. Até hoje eu não engoli o deboche... Ele debochou das pessoas que estavam com falta de ar. É imperdoável o que ele fez.

- Que epidemia?! O que o Mito fez de errado?! Nada. A Amazônia queimou, e queima, em chamas desde que me entendo por gente. Educação?! Que educação?! Nas escolas brasileiras... O que os alunos aprendem?! Conheço cada professor, que Deus me livre! E os livros escolares?! Ora, no Brasil as escolas estão uma lástima, e não é de hoje. E os livros didáticos... Melhor não falar.

- No meu tempo ensinava-se caligrafia; hoje, a garotada, já estudada, tem garranchos que mais parecem aquelas letras dos antigos povos da Mesopotâmia, das Arábias, de antes do primeiro árabe pisar na Terra. Aliás, aqueles povos tinham letras mais caprichadas do que as da estudantada de hoje em dia.

- Se a educação 'tá ruim, não sei. Mas, aproveitando a ocasião, sendo o assunto da conversa educação, e sabendo-se que educação está diretamente relacionada com escolas, digo, para vocês ouvirem: eu, ontem, ao passar, pela Albuquerque Lins, nas proximidades de uma escola, da boca-do-lobo mais que de repente espirrou-se para fora um baita de um ratão, um ratão que Deus me livre! Quase sujei as calças. Dei um pulo para trás, e por pouco não me vi estatelado no chão.

- Qual a relação entre a educação e o ratão?!

- Seu coração parou.

- Parou! Quase parti desta para a melhor. Ratos! Bichos dos infernos! Quem foi que inventou os ratos?! E era um buta de um ratão! Daqueles bem grandes!

- Culpa do Noé.

- Sujeito besta, ele.

- Chegou o melhor nosso! Pegues o copo, zé!

- Traz um balde para o nosso amigo!

- Enchas o copo, ô, garanhão!

- Dom Juan!

- Virai o copo de uma vez! Mandai ver de um só gole!

- Quero ver se tu és macho, ou se és só propaganda.

- Por este cara eu ponho a mão no fogo!

- A mão de quem?

- A tua.

- A loira! Cadê a loira?!

- Deixemos de lado assuntos desimportantes, e tratemos do que é essencial para a nossa vida. E são três as coisas que nos são indispensáveis: cerveja, futebol e cachaça, e mulher.

- Três... Você citou quatro.

- É que eu tinha me esquecido da mulher.

- Em que time tu jogas, mermão?!

- Juiz ladrão!

- O jogo ainda nem começou, ô, pancada!

- Lesado!

- Mas o juiz é ladrão.

- Sem querer abusar da boa-vontade do nosso amigo que 'tá cheio da grana, o marajá, traz a garrafa, garçom, e ponha-a na conta dele. Se ele tem grana...

- Grana eu tenho; mas não é para cerveja, não. Quero dizer: é, mas para a minha exclusiva gostosura.

- E a filha do Leandrão, hein?! Ela 'tá caidinha... Não é para o seu beiço, não. Deixe o Leandrão saber que você está arrastando a asa para a filha dele, deixe, que ele faz picadinho de você.

- Linda, a moça. Linda.

- Muita areia para o caminhão do nosso amigo.

- Eu me garanto.

- Sei. O Leandrão te acerta uma pancada, e tu vais desta para a melhor.

- Garçom, o petisco!

- Ô, periquito, onde tu vais?!

- Não foge, não, malandro.

- Vou logo ali, para uma prosa com a dona Leonor.

- Demoras?!

- Dê sossego para a velinha viúva, tarado!

- Velinha?!

- Vá se danar, retardado!

- Demoras?!

- Dependerá do relógio; se ele estiver com pressa...

- Garçom, a gelada!

- Cavou falta o cai-cai.

- O juiz ainda nem apitou o início do jogo, ô, besta!

- Mas o cai-cai já caiu. Ele cai por antecipação, para não cair na hora que o zagueiro lhe der uma pancada.

- Zé-mané!

- É nóis na causa!

- Chega chegando, malandro!

- Sabem aquele cara?! É um songomongo pão-com-ovo aquele desgraçado que se pensa o bão mas nada mais é do que um mané. Sujeitinho estúpido que só ele, aquele tal de Fábio não sei das quantas. Se pensa o tal, o fórtão, o bonzão, mas é um banana de tão...

- É ele um bocó.

- De que Fábio vocês falam?! Conheço uns dez Fábios.

- O da oficina do Campinas.

- Um estrupício!

- Energúmeno!

- Um zé!

- Vem aqui, ô, meu amigo: tu, que és da turma dos vermelhos, que o sejas, desde que deixes de lado a tua mania de tirar de um peso duas medidas. Penses, ô, amigo-da-onça: se ao avaliar as políticas do governo Lula tu usasses o mesmo critério que usas para avaliar as do Bolsonaro, estarias, tu, neste momento, pedindo pelo impeachment do Lula. Digas, vai: Tu tiras de um peso duas medidas, não tiras?! As palavras, ditas há poucas semanas, do Lula contra Israel causarão transtornos incontornáveis ao Brasil, prejudicando a já difícil vida dos brasileiros, que têm de comer o pão-que-o-diabo-amassou para sustentar uma casta parasitária vagabunda e inculta e estúpida, se derem os americanos sequência à ação que lá nas terras deles estão pensando em dar contra o presidente brasileiro, que fala bobagens sem fim. E quem sofrerá as consequências?! Os brasileiros, claro. Eu erro ao dizer que a ação dos americanos se faz contra o Lula; é contra o Brasil, na verdade. A comissão não sei das quantas do Congresso Americano exigirá do governo do sir Brandon, aquele acéfalo desmiolado, recurso de força econômica contra o Brasil? Se sim, quais serão as consequências não sei, mas uma coisa é certa: o Brasil vai se ferrar bonito. Quais as punições ao Brasil? Sei lá. Imaginemo-las: embargos econômicos; proibição às empresas brasileiras negociarem as suas ações nas bolsas americanas... E quais mais?! Sei lá. Não sou da área. Economia não é a minha praia. E quais meios tem o Brasil para resistir à punição americana, se os americanos vierem com tudo?! Onde estava com a cabeça o homem que melhor representa a esperança do povo brasileiro?! Onde?! Além de inspirar às nações mais poderosas repulsa ao que diz, ele transforma o Brasil em alvo predileto de tiração de sarro. É uma lástima. Sempre que se põe a falar, o tal Éle... Ele 'tá ferrando o Brasil. Israel já se irritou à beça... Cá entre nós, até que demoraram a brandir a funda e disparar a pedra os filhos de Davi... E agora os Estados Unidos... O bicho vai pegar. A coisa vai feder para o nosso lado. É o que dá pôr um polvo na presidência de um país sério. O que os cefalópodes têm na cabeça?! Sabes?! Estudes, atentamente, a anatomia de tais criaturas; e entendas em que apuros nos pusémos. Estamos numa enrascada das grossas.

- Nada quero saber do Bolsonaro; e do Lula, menos ainda. O homen forte, macho...

- E a Amazônia?! E os Yanomamis?! Morrem três por dois. E tu te calas.

- Não confio no Bolsonaro. Ele adora o Ustra, torturador; e os militares...

- E o ministro Tarcísio, o que vós tendes a falar dele?! Os fazoéles o odeiam; e os da direita sapatênis e a turminha dos intelectuais seguidores do guru dizem que ele não é lá o homem da vez, não; dizem que ele é...

- Que ministro Tarcísio?! Ele é governador, e do estado de São Paulo.

- Ele é o governador ministro Tarcísio, o Gomes de Freitas, melhor governador da história do Estado de São Paulo. Fez e aconteceu no Guarujá, em São Sebastião...

- Onde o Mito conheceu uma jubarte que não era de se jogar fora, não.

- ... e em outras localidades litorâneas da região norte.

- No Amazonas?!

- Na região norte de São Paulo.

- E pode São Paulo, que está no Sudeste, ter norte?!

- Eita!

- Essa doeu. Você é dodói da cabeça, né, cara?!

- "Amazonas" se escreve com "ze" ou com "ésse"?

- Não faço a mínima idéia.

- Óia'qui, cambada de jegues: a Cleópatra não é uma jubarte: ela é esbelta, esguia, uma senhora respeitável, mãe dedicada, mulher fiel ao marido, mas, como ninguém é perfeito, tem um defeito, o único: o de esticar os olhos para os imperadores de Roma.

- Eita! Hoje o nosso amigo está inspirado. Falando abobrinhas a três por dois...

- O Tarcisão do Asfalto não quis nem saber: asfaltou os bandidos e mandou os jornalistas lamberem sabão. Que vão pastar os jornalistas, gente chata dos infernos. Bandido é bandido; e polícia é polícia. Infelizmente, há muitos descerebrados por aí que acreditam que os bandidos são coitadinhos, vítimas da sociedade, esta malvada. Fez bem o capitão. Que os bandidos vão para o raio que os parta! E que levem juntos os jornalistas! Pentear macaco ninguém quer; mas aporrinhar a cabeça de quem está a trabalhar sério os espíritos-de-porco sabem.

- A nossa conversa está assumindo ar muito sério. Daqui a pouco, vocês se trucidarão, se engalfinharão, se arrancarão os cabelos daqueles que os têm, se escalpelarão, quebrarão os dentes uns os dos outros.

- Sorte dos meus amigos amáveis, os meus melhores amigos-do-peito, que eu esqueci o machado em casa.

- E eu não me lembrei de trazer a garrucha.

- E eu que não trouxe a a minha kalashnikov!

- Vamos abaixar a temperatura. Estamos entre irmãos.

- E os irmãos se matam. Vós nunca ouvistes falar de Caim e Abel?!

- Mudando de pato para ganso: filmes. Vamos falar de filmes.Quem sabe vocês anuviem a cabeça... Gosto de filmes. Vocês também gostam de bons filmes, não? De filmes bons, muito bons, otimamente bons?! Não sou de assistir aos que agradam à molecada: Homem-Aranha; Super-Homem; Mulher-Maravilha; Vingadores; filmes de super-heróis, enfim, não são para mim. A garotada os ama. Coisa da idade. Para o meu gosto, são tais filmes demasiadamente irrealistas, exageradamente irrealistas, tais quais os dos robôs alienígenas, os do King Kong, os do pirata caribenho, os do Senhor dos Anéis, os daquele bruxo, o Potter não sei das quantas. São pra lá de fantasiosos. E não têm pé nem cabeça. Não são para mim. Para mim têm os filmes de ser mais pé-no-chão. Havia um bom tempo eu não assistia à coisa que me agradasse. E ontem, para a minha surpresa, após ler um comentário do Paulo Cursino, assisti ao Ficção Americana. Ótimo o filme. Ótimo. Demolidor. Faz picadinho das idéias... dessas idéias sem pé nem cabeça que andam por aí... Está o filme em inglês... Em português é Ficção Americana. Em inglês... Onde está o nosso amigo poliglota?!

- Faltou à nossa assembléia de mestres e doutores eruditos. Faz-nos falta aquele mala-sem-alça.

- Justo hoje, hoje que preciso da ajuda dele?! O nome do filme, em inglês, digo, perdoem-me a pronúncia acaipirada, é American Fiction. Não é o filme do agrado de quem só quer dos filmes saber de cenas de tiroteio que reduz prédio de dez andares a um queijo suiço, e de perseguições de carros, de motos, de aviões, de naves espaciais, de helicópteros, de trens, de navios, e de lutas coreografadas...

- As melhores, do Jack Chan e...

- Perseguições de trens nos filmes nunca vi, mas de carros e de motos há umas que são mais espetaculares dos que outras.

- Ficção Americana vai num ritmo lento, bem lento, quase parando, apropriado para se contar a história que conta.

- Não sou de assistir a filmes, não. Nenhum deles. Sejam os de super-heróis, sejam os de robôs intergalácticos, sejam os de orangotangos gigantes, sejam quais forem. Às ficções absurdas prefiro a realidade. Documentários eu os estimo, embora haja cada um que só vendo.

- Filmes, filmes, para mim, os de tribunais, e olhe lá! Não têm tanta besteira como Guerra nas Estrelas e o outro... É... Jornada não sei das quantas... E os de super-heróis?! Absurdos e mais absurdos! Querem um filme bom? Assistam ao A Testemunha de Acusação, dos anos sessenta, cinquenta, quarenta... Sei lá eu de quando. É antigo, e está em preto e branco.

- No início do filme, uma cena hilária: numa sala-de-aula, uma beldade de cabelos coloridos indignada porque... Nada digo. E a aventura, homérica, digo, do escritor que escreve um livro que a editora quer publicar mas o qual ele não quer que ela publique... Hilário. Um soco no estômado dos desmiolados que andam por aí.

- De que filme tu falas?

- Do qual eu falava: Ficção Americana.

- Cadê a Cleópatra?

- É baseado o filme...

- Fuma-se filme...

- Qual filme?

- A Testemunha de Acusação. É baseado num livro da Rainha do Crime. Eu nunca li... Dos livros dela eu não li um que seja. A minha mulher é fã-de-carteirinha dela. Com as amigas, umas dez, criou um fã-clube da Rainha. As senhoras se reúnem, ora na casa de uma delas, ora na casa de outra, para trocarem figurinhas de livros policiais, os da Agatha e os de um francês belga, escritor, este, que é quem criou um comissário. Minha mulher tem uma biblioteca imensa, em casa, com uns dois mil e tantos livros, todos de policiais histórias... histórias policiais. Tem a coleção completa do Sherlock, de quem ela mulher... de quem ela muito gosta. De todos os personagens o do qual ela mais gosta é o tal Hércules. Eu, que não sou de ler livros, nunca fui chegado às palavras escritas, aprendi a gostar de filmes de investigação, de tribunais, por influência da minha cara-metade, que vive comigo há uns trinha... trinta anos, sob o mesmo teto, desde que, diante do padre e do sacristão e do bispo, e de umas duzentas pessoas, nos prometemos eu para ela e ela para mim, vivermos, juntos, na riqueza e na pobreza, e na miséria, e na desgraça, e, dentro de uma caixa de papelão, embaixo do viaduto, se preciso for, e na saúde e na doença, e na beleza e na feiúra, sob sol e sob chuva, até que a morte nos separe. Ah! A minha mulher assistiu ao Assassino no Trem umas vinte vezes. Um trem sai não sei de qual cidade da Turquia rumo à França. E uma avalanche impede-lhe o avanço ao bloquear-lhe a passagem. E enquanto esperam que alguém desobstrua o caminho, para não morrerem de tédio os passageiros decidem matar um dentre eles. E não contavam os assassinos com a astúcia do Hércules, o perspicaz detetive, perspicaz que só ele, detetive que resolveu, após quebrar a cabeça, o mistério, antes de, a ferrovia desbloqueada, retomar o trem a viagem rumo à Europa. Não é um filme; são dois filmes. Dois, ou três, não me lembro... Cada qual com atores... Não me lembro. São três adaptações da mesma história.

- O Hércules não é grego?! Se é grego, o que ele procurava na Turquia?! E por que ia para a França?!

- Na Bélgica só existe mulher.

- Que bobagem!

- Verdade. Verdade. Lá há mulheres masculinas e mulheres femininas. De qualquer maneira, mulheres. Fala-se "a belga" e "o belga", todos femininos. Se "belga" termina em "a", mesmo que se refira aos homens, e se sabe que palavras que terminam em "a" são femininas, então na Bélgica não há homens, só mulheres.

- Como assim, ô, pamonha?! Se eu assisti a vídeos gravados na Bélgica, e nos vídeos havia homens?!

- Eram estrangeiros; certamente suiços.

- Se o teu raciocínio vale seu peso em ouro,então no Vietnã também só há mulheres.

- E no Japão e na Noruega?!

- E na Mongólia?!

- O Hércules da Grécia era grego; o do livro da Agatha, não. Este é um detetive... Investigador... Sei lá.

- Meu filho tem o hábito da leitura. Lê tudo que lhe cai nas mãos. Dos meus filhos, o caçula; os outros três, não; estes dedicam-se aos esportes. Mas o meu mais novo é um rato-de-biblioteca. Em casa, no quarto dele, uns quinhentos livros. Só não tem mais por escassez de espaço. Dia destes, ele me falou de um livro, para ele engraçado, de um homem que, sentado num banco de uma praça de uma cidade localizada pelas bandas da Transilvânia, terra do Drácula, espera um tal não sei quem, durante não sei quanto tempo, e ele, o homem sentado no banco da praça, não sabe por que está a esperar não sei quem, um homem que ele não conhece, um homem que ele não faz a mínima idéia de quem seja, um homem que jamais havia visto mais gordo. E fica, lá, o coió, à espera sabe-se lá de quem.

- Que história mais besta!

- E há quem perca tempo lendo tal porcaria?!

- Meu filho.

- Eita!

- Que homem jamais havia visto quem mais gordo?!

- O do banco da praça o homem que ele esperava.

- E quem esperava a Cleópatra?! Quem?! Quem bebeu a cerveja que estava neste copo?!

- O meu caçula adora histórias estranhas. Ele me conta cada uma das que lê, que só vendo. E lendo. E eu me pergunto o que os escritores têm na cabeça além de massa cinzenta. Se é que é cinzenta a massa que eles têm dentro da caixa craniana...

- Caixa?! O gato da Cleópatra dorme dentro de uma caixa, uma de papelão, que foi à casa dela com um par de sapatos dentro. Foi, não; a Cleópatra o levou. E o vento... O vento levou...

- Em um livro, disse-me o meu caçula, há um rinoceronte que inferniza uma cidade inteira; e em outro, um elefante branco, que não existe; e em outro um gorila, que mata uma pessoa e a esconde atrás da parede... atrás, não: dentro. E em outro livro, um sentinela protege, sem saber porquê e de quem, um forte; não sei se forte apache o forte...

- É fraco o apache.

- O sentinela protege o forte, durante não sei quantos anos, após uma guerra, e antes de outra guerra, que jamais eclodia. E em outro livro, há um personagem, que nem nome tem, que é conduzido à delegacia, acusado de um crime que ninguém, e nem ele, sabe qual é. Ninguém sabe de que crime o acusam. As pessoas que o acusam de haver cometido um crime não sabem dizer qual é o crime de que o acusam...

- Mas o seu caçula sabe, não sabe?!

- Sabe o quê?! Qual é o crime de que acusam o personagem do livro?! Não. Não sabe.

- Não sabe?! Mas, se ele leu o livro...

- O escritor não disse a razão do porquê queriam prender o personagem.

- Que escritor burro!

- Burro por quê?!

- Por quê?! Se ele escreveu a história de um cara acusado de cometer um crime, mas não diz de qual crime o acusam! É burro! Ou ele também não sabia qual era o crime. Ou é um charlatão. Não sabendo escrever uma história com começo, meio e fim, escreveu qualquer bobagem.

- É a história a de um homem que não sabe porque é acusado de...

- O escritor que escreveu tal história não sabia escrever uma história policial. Ele certamente invejava o escritor das histórias do Sherlock; e para não dar muito na vista, largou a história pela metade...

- Não li o que o seu filhote leu, e não vou ler, e não quero saber de tal história, que não é do meu interesse porque conta a história de um homem, e o tal não é a Cleópatra, que eu quero...

- Eita! Até acordado ele sonha com a Cleópatra

- Em outro livro, uns aventureiros, encerrada a guerra do cavalo...

- Guerra do cavalo?!

- É a do cavalo de madeira que os egípcios deram de presente aos gregos.

- Vós conheceis a expressão 'presente de grego'? Tem ela a sua origem na história do cavalo de Tróia, que era de madeira, e grego. Ao final da guerra... Na verdade não foi ao final da guerra; os gregos passaram uma rasteira nos troianos, e...

- Coisa de brasileiros. Os gregos descendem de brasileiros?

- A história foi escrita há uns três mil anos, antes de Matusalém nascer. Conheço-a, mais ou menos, menos do que mais: os gregos presentearam os troianos com um imenso cavalo de madeira, oco, dentro do qual, sem que os troianos soubessem e de nada desconfiassem, havia um bom punhado de soldados gregos, que, após os troianos empurrarem o presente para dentro de Tróia, e encherem a cara, e dormirem, de dentro do cavalo saíram e, sem que os troianos lhes impusessem resistência, a mínima que fosse (e podiam se, bêbados, os borrachos dormiam, com os anjos, a sono solto?!), degolaram todos eles, e fizeram a festa.

- É isso que dá encher a cara de cachaça!

- Era de madeira, mesmo, o cavalo gigante? Se era, era de sequóia. Baita árvore! É só pôr no chão uma delas, escavá-la, e está aos olhos de todos ou um cavalo oco, ou uma girafa oca, ou um elefante oco...

- E a sua cabeça oca.

- Os gregos, cabeças-ocas.

- Gregos?! Não foram os egipcíos?!

- Não. No Egito não havia cavalos. Na terra dos faraós só havia camelos e gatos.

- Detesto gatos.

- Detesto camelos.

- Detesto egípcios.

- Livros não são comigo. Penitencio-me. Já os filmes prefiro aos barulhentos de hoje em dia os antigos, os preto-e-brancos, principalmente as comédias do Chaplin, que são as minhas prediletas. Há uma, de uns vinte minutos, em que ele, pra lá de Bagdá, às portas de Marrakesh...

- Marrakesh?! Marrakesh fica antes de Bagdá.

- Pelo oeste, não.

- A Terra é redonda, né, mané?!

- Não é, não: tem o formato de um abacate-de-umbigo.

- A Terra é oca.

- E eu dizia: à sua casa chegando alta noite, o Chaplin atrapalha-se tanto que mal consegue sair do carro; e mal entra na sua casa, um felino morde-lhe o pé e o ponteiro de um relógio (para se fazer a cena, que é hilária,convenientemente localizado num ponto inapropriado) atinge-lhe a cabeça; e escala as escadarias acolchoadas para chegar ao andar superior, onde, enfim, ele, após uma sequência de peripécias engraçadíssimas, no quarto, batendo-se com uma cama, que sai esmigalhada do conflito, acidentalmente cai numa banheira onde encerra a sua jornada noctívaga. Chamou-me a atenção o chuveiro, assemelhado a uma gaiola, repletos de furos os seus canos, furos dos quais a água é jorrada contra ele. É engraçado o filme. O Chaplin é um mestre da comédia. O mestre dos mestres. Assisti ao filme umas não sei quantas vezes. Chaplin é um mestre da comédia, o maior deles. Hoje em dia não se fazem mais comediantes como ele. Ele e Harold Lloyd, e Buster Keaton, e os Patetas, e Hardy e Laurel... Bons tempos do cinema. Bons tempos. Bons tempos.

- O interessante no filme...

- Qual filme?!

- O do qual eu falava.

- Que é o... ?

- Já o esqueceste, mané?!

- De tanto que se fala, aqui, neste mercado-de-peixe, guardei na memória o Chaplin e os Três Patetas.

- Falei de A Testemunha de Acusação, que, em inglês, fica...

- Gol!

- O jogo ainda não começou, ô, maluco!

- Em inglês é o nome do filme... Onde está o nosso amigo poliglota?!

- Escafedeu-se. Bebeu chá-de-sumiço. Um livro... Um litro. Puro. Direto goela adentro.

- Não sei se me arrisco falar... É Witness for the Prosecution.

- Não ficou ruim, não. Mandou bem. Tirou de letra. Não sei que idioma você falou, mas não ficou de todo mal, não, o que você disse. O seu sotaque estragou a pronúncia, mas não de todo. Não fosse o seu sotaque acaipirado o de um jeca maltrapilho esmolambado e mal-ajambrado com bicho-do-pé e pé-de-atleta, ninguém diria que você não é da terra dos caubóis foras-da-lei rápidos no gatilho.

- Você me elogiou?! Entenderei o que você me disse como um elogio. Mas vamos ao filme: o filme é fora-de-série. Os atores, todos do topo. Só fera: Tyrone Power; Charles Langhton; e Marlene Dietrich. E os outros, os coadjuvantes, não ficam atrás destes, não. Feras também eles. Até os advogados mais experientes, os mais ladinos, podem ser feitos de otários, podem ser passados para trás por tipos acima de qualquer suspeita, é o que o filme revela. Passaram a perna no advogado, um macaco velho. A trama se transcorre na casa, que é o escritório, que é a casa, do advogado, e no tribunal. Não tem cenas hiperbólicas de tiroteios e perseguições de quaisquer naturezas; prende a atenção, com os diálogos, o atrito de personalidades. É um filme para ninguém botar defeito.

- E apita o juiz.

- Quê?!

- Ijo.

- Quem apitou o juiz?!

- Aquele filho-de-chocadeira.

- Carrinho vale?! Perna-de-pau! Carrinho! Vermelho para ele, seu juiz! Vermelho! O jogo mal começou, e ele já mete o pé, o cavalo! na canela do melhor nosso?!

- Vermelho, seu juiz! Vermelho!

- O homem 'tá cego.

- Só pode.

- Convenientemente cego.

- Cego por conveniência. Parece nome de filme.

- E a filha do Bernardo... Dei de cara com ela anteontem. Ela, a mais nova das três irmãs, acompanhada da Lúcia, ia ao supermercado quando me encontrei com ela. É uma garota de quinze anos. Aquela menina, menina de quinze anos, está prenha.

- Tu falas de uma mulher, ou de uma... Diacho! Diga eu o que eu disser, a desrespeitarei.

- É pênalti! Juiz cego! Filho-da-égua!

- Que pênalti?! O cara se jogou.

- Caiu na área, é pênalti.

- Filho-da-mãe!

- Da mãe de quem?

- Garçom, outra loira! Pra ontem! A coisa, aqui, 'tá esquentando!

- Vocês assistiram àquele filme com o Chuá, que é um andróide, um sei lá eu o que, um qualquer coisa, metade gente, metade máquina, ou nem uma coisa, e nem outra... Assisti ao filme há tanto tempo, que não me lembro dos detalhes. Recordo-me, todavia, que o Chuá vai ter em Marte, então dominado por um empresário que controla o fornecimento de oxigênio em todo o planeta, assim fazendo e acontecendo o que bem entende, obrigando todos os marcianos, que são humanos, e não alienígenas, embora alguns espécimes dentre eles se pareçam com criaturas de outros planetas, a comerem-lhe nas mãos o que ele lhes oferece, e o que ele lhes oferece é menos do que nada. Também pudera! O cara tem o olopólio, molopólio...

- Monopólio, doutor. Monopólio.

- ... o monopólio do fornecimento de oxigênio. Se toda pessoa precisa respirar! Assim, todos marcianos dependendo de oxigênio, que só ele, e mais ninguém, tem, ele manda e desmanda.

- Monopólios desgraçam qualquer economia. E o oligopólio também. Havendo oligopólio em um setor da economia, dois, ou três, poucos, enfim, empresários o dominam, em não raros casos aparentemente concorrendo entre si. Sabemos o que rola atrás das cortinas...

- O quê?! O quê?! Conta o segredo, conta. Eu gosto de fofocas.

- O mundo é do cão. E alguns filmes o retratam. O do Chuá é um deles. E outro é o Robocop, o primeiro, o...

- É gol! É gol! Vai! Vai! É gol! É gol! É... Fora! Pelo amor de Deus! Fora! Perna-de-pau dos infernos!

- Tinha de ser ele.

- Na semana passada, ele e o goleiro cara a cara, um a olhar para o outro, e o outro a olhar para o um, e eu não sei quem é o um e quem é o outro, e o perna-de-pau chuta a gorduchinha, e... e... e...

- E... e...

- ... e um balão, pelos ares, sobrevoou a cidade, e caiu em Madagascar.

- E o Pelé?!

- Hã?!

- Burguer.

- Que que tem ele?!

- Ele jamais deu uma bica na bola e mandou um balão.

- Jamais?! Ele era o rei do fu... Era, não: é. É o eterno Rei. O Maradona não lhe chega aos pés. É o Rei; no entanto, todavia, uma vez e outra mandava a pelota para fora do estádio ao acertar-lhe uma bicuda de fazer morrer de inveja o Patada Atômica e quebrava a canela de alguns inimigos desaforados e desavisados.

- Vejam... Que beleza! Avião!

- Conheço-a de blusa decotada e mini-saia.

- A Cleópatra era, no tempo das pirâmides, a mulher mais bonita do Egito. Foi ela quem inventou o relógio-de-pulso. Da família dos Bartolomeus, amiga da Joana d'Arc e da Imperatriz Leopoldina, mandou o imperador Júlio César construir os Jardins Suspensos da Babilônia no Rio de Janeiro e... Encha o copo até a boca!

- Erudito. O nosso amigo é um erudito.

- Nobel de História Universal.

- Cadê o meu copo?! Cadê o meu copo, que eu deixei, aqui, bem aqui, em cima do balcão, aqui, bem aqui, para o... Cadê o meu copo?! 'tava vazio... Era para encher o... Cadê o meu copo?! Cadê?!

- O que é isso na sua mão, ô, retardado?!

- Ah! É o meu copo. Mas ele ainda está vazio.

- O manguaça já esvaziou quantos copos?

- Um só. Às sete da noite de ontem, ele agarrou o copo que tu vês às mãos dele, e até agora não o soltou. Aquele copo foi o único que ele esvaziou da noite de ontem até agora. O único. Tenho certeza. Quantas vezes ele o esvaziou?! Se não perdi a conta, quarenta e duas. Não tirei o olho dele desde...

- E por que tirarias o olho dele? Para tu o olho dele é um souvenir?! O direito, ou o esquerdo?! Qual deles queres? Se me pagares bem, varo-lhe o olho...

- Por que "quarenta" se escreve com "queú", e "careta" com "cê"?

- Por que em "quarenta" há um "ene" entre o "e" e o "te", e em "careta", não.

- Palavras do professor do Machado de Assis e do Rui Barbosa.

- É treta! É treta!

- Oi?!

- To.

- Que o circo pegue fogo!

- O que se assucedeu?! Desviei o olho por um segundo, e perdi o que...

- Eu torço pela briga.

- Aquele perna-de-pau, de carrinho, e por trás, o porqueira! derrubou... Expulsa ele, juiz desgraçado! Expulse-o, filho-do-diabo! Vermelho, caramba! Dá-lhe vermelho!

- A Cleópatra não jogava futebol. Nem assistia aos jogos. No tempo dela, jogava-se futebol com armadura de ferro; e as bolas eram de madeira... de mogno, as da realeza; eucalipto... Cadê o ovo de codorna que estava neste prato?!

- Você o comeu, ô, bêudo!

- Eu?! Comi o quê?! O ovo?! Não o comi, não. Ei. O jogo já começou?! Vocês viram a Cleópatra? Sabem aquele nariz... o daquela estátua... aquele nariz, que arrancaram... Era da Cleópatra.

- Hoje o nosso amigo cismou com a Cleópatra.

- Na semana passada, com a Mata Hari. E com a Pompadour, na anterior.

- Eita!

- A Cleópatra... Onde estão as chaves do meu fusca?!

- A Cleópatra as pegou, e foi-se de fusca embora, largando-te aqui, embora te ame mais do que tudo na vida.

- Maldita mulher maldita! Que diaba!

- Não acredito que o juiz não soltou nem um amarelo p'ra'quele cavalo!

- Banana! Juiz banana!

- Comprado!

- Segue o jogo.

- Truco!

- Que jogo?!

- Filme bom é o...

- Gol! Gol! Golaço! Aço! Aço! Aço!

- De placa!

- Uma pintura!

- Foi onde a coruja dorme!

- Golaço! Aço! Aço! Aço!

- Dribla um; dribla dois; dribla três. E pimba na gorducinha! Agora, vai para a torcida! O neguinho é bão!

- O Garrincha 'baixou nele.

- Que pintura!

- De placa!

- O bicho é bom!

- Golaço!

- E... Que pernas! Vejam, cavalheiros. Que pernas!

- A Cleópatra tinha pernas. Duas. Ela usava tamancos de mogno, de cedro e de jacarandá, e sandálias de borracha extraída de seringueiras da Amazônia. Sempre que ela viajava para....

- Gol! Gol! Gol! Gol!

- Mais um?!

- Tão rápido?!

- Gol do... do... Você comemora gol dos dois times, ô, pilantra?! Você... Você torce para qual time, afinal, ô, bandido?! Para os dois times, maluco?! Você está torcendo para os dois times?! Traíra! Ele está torcendo para os dois times!

- É um zé.

- Apostei com o João que daria empate. Duzentas pilas!

- Herege!

- Apóstata!

- Apóstata, sim, pois apostei duzentas pilas! Duzentas pilas!

- Ateu!

- Maçom! Ele é maçom!

- Espírita pitagórico!

- Testemunha de Jeová dos últimos dias dos dias finais do universo cósmico intergaláctico!

- Monge xinguelingue! Pastel-de-flango místico!

- Ele é de alguma seita gnóstica!

- É o nosso amigo um reptiliano transhumanista tecnocrático da quinta dimensão arcadiana do pentagrama cabalístico de Cybertron.

- Eita!

- Vai que vai... Passe a bola, fominha!

- Pé que ponta...

- Hum?!

- Bigo.

- Que desgraçado. É o nosso amigo um... Caramba! Só agora percebi que você, falando mais do que a nega do leite, fala bem e fala mal de todo time, e jamais demonstra fidelidade por nenhum deles. De tanto que você fala, tropeçando na língua, que ninguém atenta para o que vai...

- Fala mais do que a própria boca.

- Mais do que papagaio.

- Falando em papagaio, lembrei-me do papagaio do meu irmão.

- De fato, ele é um papagaio.

- Mas não foi dele que me lembrei; foi do papagaio dele. Ele o ensinou a falar uma frase.

- Qual papagaio ensinou qual papagaio a falar uma frase?

- Meu irmão o papagaio dele. Como se ensina um papagaio a falar uma frase? É simples: repete-se, dia sim, e dia não, todo dia, às vezes, e sempre, toda vez que se passa diante do papagaio, a frase que se quer ensinar para ele. O papagaio do meu irmão, que também é um papagaio, pior, um híbrido de papagaio com maritaca, toda vez que vou em visita ao meu irmão saúda-me, gentilmente: "Bom dia, corinthiano."

- O papagaio está a vos elogiar, ou a vos ofender?!

- Não sei.

- O seu irmão não ensinou palavrões para ele? Papagio legal fala palavrão.

- Vós sois tão moralmente podre que corrompeis até a ingenuidade natural dos papagaios.

- O papagaio sabe o significado de "corinthiano"? Não.

- "Corinthiano" pode significar o que se quer que signifique. Se digo mal, dizendo bem o mal que digo... Quero dizer, ao falar mal de alguém, e falando bem ao dele falar mal, se ele merece que dele eu fale mal porque é ele um reles traiçoeiro, um malandro, eu digo: "Ele é um corinthiano.", querendo dizer que é ele um tipo bandido, um salafrário, um desqualificado. Se quero falar bem, falando bem, de alguém, eu digo: "Ele é um corinthiano." Ora, "corinthiano" tanto pode ser um xingamento quanto um elogio; e tanto um substantivo quanto um adjetivo; e pode ser convertido em um advérbio, o "corinthianamente", e em um verbo, "corinthianar", que no presente do indicativo fica: Eu corinthiano; tu corinthianas; ele corinthiana; nós corinthianamos; vós corinthianais; eles corinthianam. E para título de curiosidade, no pretérito mais-que-perfeito é assim: eu corinthianara; tu corinthianaras; ele corinthianara; nós corinthianáramos; vós corinthianáreis; eles corinthianaram.

- Com o agá ou sem o agá?

- Tanto faz.

- E permite-se que se bagunce tanto assim o Português?!

- E para bagunçá-lo deve-se solicitar permissão a alguém?!

- Mais bagunçado do que já está?!

- O Português já é bagunçado por natureza.

- E quantos papagaios há entre nós a repetirem palavras e frases cujos significados desconhecem porque as ouviram aqui e ali, e em todo lugar, dia e noite, e de madrugada, todos os dias da semana, e nos domingos e feriados e pontos facultativos?!

- Cá entre nós: em certa medida, todos somos papagaios, uns mais, outros menos, todos somos...

- Gol! Gol! Gol!

- Golaço! Aço! Aço! Aço! De letra! Que pintura!

- Uma caneta, um chapéu, e gol!

- Diabos! Desempatou.

- Perdereis...

- Garçom, a loira! Gelada! Bem gelada, para nos esquentar.

- E mais espetinhos! Comeram os que estavam aqui.

- E não deixaram nenhum para mim?!

- A Cleópatra já regressou da viagem?

- Já. E arrumou as malas, e foi-se embora para Pasárgada. Lá, ela,amiga do rei, escolherá o homem...

- Maldita mulher! Mulher maldita! Nunca mais deixairei o meu cartão de crédito com ela! Jamais! Cadê a cerveja que estava dentro do meu copo?! Cadê?! Cadê?!

- Esta dentro do seu corpo, ô, mané.

- E o juiz apita fim de jogo.

- Perdi duzentas pilas! Voaram-me das mãos duzentas pilas! Duzentas pilas!

- Bem feito para você, traíra.

- Danei-me.

- Cadê o gandula?

- Hein?!

- Fim.

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 16/03/2024
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