Damião Ramos Cavalcanti entre a filosofia da arte e a arte da filosofia

                Autor – José Mário da Silva / PAL – ALCG

               
             A crônica é um gênero anfíbio da literatura. Transida entre o factualismo jornalístico e a transcendência estética, a crônica é o hibridismo do hibridismo, o entrelugar da linguagem, a particular modalidade de formulação textual que se recusa a caber dentro desta, daquela, ou de qualquer que seja a grade classificatória que a queira aprisionar. Malandra em sua íntima ontologia, a crônica enamora-se dos vários modos de transfiguração do real, mas, indomável em seu peculiar jeito de ser e de estar na república das letras, ela não assina pactos de convivência duradoura com nenhum deles, a não ser consigo mesma e com o seu libertário e errático modo de constituição.

                Desdenhando das conceituações que se pretendam dogmáticas, a crônica, tal qual um pássaro que somente se realiza nas amplidões do infinito, é um deleitoso convite para a experiência da fruição, fruição essa para a qual ela nos convoca nos fugidios espaços jornalísticos, impressos ou eletrônicos, nos quais ela se refugia e ilumina, com o engenho e a arte de quem a produz, os vãos e desvãos do cotidiano.

Do poema em prosa, ao roçar nas fímbrias do tecido com que se veste e se desveste a arte ficcional; da meditação filosófica, ao delicado incursionamento pelo território aberto do ensaio, com leveza e sem apelos doutrinários, plural é a travessia da crônica, gênero literário, hegemonicamente cultivado na geografia paraibana, e que tem no professor universitário e membro da Academia Paraibana de Letras, Damião Ramos Cavalcanti, um dos seus mais fiéis e devotados intérpretes.

                Nas páginas prestigiadas do mais que centenário Jornal A União, o professor Damião Ramos Cavalcanti nos tem brindado com crônicas admiráveis, nas quais numerosos e multiplicados são os registros que ela tem produzido sobre os diversos aspectos da realidade que tem tomado como a matéria-prima do seu cronicário.  O primeiro ponto que me chama a atenção no processo de elaboração da crônica do professor Damião Ramos Cavalcanti radica na estrutura retórica que a constitui e lhe garante sustentabilidade formal. Estrutura essa que, antilinear por excelência, simula, aparentemente, a olhos menos atentos, dispersão estilística e desfocamento temático, sendo, na realidade, um artifício discursivo que, no final das malhas argumentativas do texto, como diria José Nêumanne Pinto, vai direto ao assunto, ao indesviável cerne do conteúdo de que se instrumentaliza em seu peculiar ato-processo de recriação da realidade.

                Por esse prisma, sem abrir mão da leveza tonal que a essencializa, a crônica do professor Damião Ramos Cavalcanti assume sotaque ensaístico e dicção filosófica indisfarçáveis, sendo a filosofia um dos saberes dominantemente presentes na sólida formação humanística de quem, tendo iniciado os seus estudos superiores no Brasil, alargou o seu compasso e foi buscar em Roma a ampliação dos seus já alentados horizontes epistemológicos. Espraiada, em diversificadas direções, a crônica do professor Damião Ramos Cavalcanti peregrina por vários domínios: ora o lirismo se evola de uma memorialística relembrança do mar em seus fascínios, mistérios e perigos, notadamente, o mar que é, em sua aparição original, recuperado pela percepção da criança que ainda habita o homem que já se encontra alojado nas regiões da maturidade; ora a tonalidade da crítica social se acentua; e a crônica, diria o mestre Eduardo Portella, tanto celebra quanto denuncia a cidade moderna, palco de grandezas e misérias, luzes e sombras; ora aciona as teclas do código afetivo na cartografia exata de uma personalidade marcante, com quem o cronista conviveu e escreveu um bonito enredo chamado amizade. Aqui, evoco, dentre outras, a crônica que o professor Damião Ramos Cavalcanti consagrou ao pensador José Jackson Carneiro de Carvalho, paradigmático intelectual das cenas e cenários da Paraíba, autor de referenciais estudos sobre consagrados nomes da literatura universal, a exemplo de Albert Camus e Dostoiévski; ora mergulha, poética e filosoficamente, no mistério do silêncio e no silêncio do mistério, ao ensinar-nos que é somente quando nos calamos que somos capacitados para ouvir o altissonante sussurro de Deus em nossas almas, muitas vezes, ensurdecidas; ora, de mãos dadas como a compaixão, ergue um canto de solidariedade aos muitos que sofrem muito neste mundo caído, bem como cercado de desconcerto por todos os lados; ora incursiona pelo sempre palpitante temário do tempo, dentro do qual estamos imersos em nossa travessia rumo aos bastidores invisíveis, mas reais, da eternidade.

                Enfim, beijando um assunto aqui, outro ali, como o colibri referido pelo genial Machado de Assis, o professor Damião Ramos Cavalcanti faz do fluir irreprimível da vida, a personagem protagonista da sua aberta e descentrada crônica literária, permanentemente transida entre a filosofia da arte e a arte da filosofia.