Vento da mudança
Verão. Quatro e meia da tarde. Uma brisa fresca balança levemente a cortina da sala de jantar. O cheirinho de maresia é, aos poucos, substituído pelo de esterco. Pela janela vejo um pedaço de céu azul e, do outro lado do muro, alguns galhos com folhas verdes, douradas pelo sol.
Minha vizinha Josefa quebra o silêncio com um sonoro Muuu. Como se me mandasse um recado: “Escreva mesmo, Jeane. Compartilhe a magia que você testemunha todos os dias! Nos faça famosos!” Ambiciosa, essa vaca trans.*
Moro aqui há pouco mais de um mês e já me sinto nativa. Minha pele não denuncia mais a brancura urbana. O contexto meio rural já não me espanta, mas tranquiliza. A natureza exuberante atropela os meus sentidos com sua beleza.
Florianópolis tem um mar transparente recortado por morros e ilhas, na mais perfeita harmonia. No sul, o cenário é decorado por montes verdes, bovinos, ciclistas, gente tatuada até no rosto, cães gaiatos pegando uma praia, carros com placas novas e uma vibe generalizada de sossego.
Os moradores são atléticos, bronzeados e assustadoramente sérios. Pedestres atravessam na faixa de segurança sem olhar para os lados, confiando cegamente que os motoristas sempre vão parar. E param, felizmente. Parece que há um acordo velado entre condutores, transeuntes, ciclistas e vira-latas, e todos se entendem. Semáforos, pra que te quero?!
É lindo ver tanta gente 60+ andando de bike ou caminhando a passos largos, com um sorriso satisfeito no rosto. As pessoas em geral são muito bonitas. Não diria que o povo é acolhedor, mas é educado e solícito. Por vezes, folclórico.
Como ir ao bairro do Campeche e não se apaixonar pela petshop Cãopeche? Ou dar um tapa no visual no salão StudYou de beleza? Na fome, que tal provar a alegre coxinha de bacon Bacontente? Ou despertar os instintos afrodisíacos e inquietudes proféticas na osteria Ostradamus?
A influência açoriana é um charme à parte, com suas casinhas antigas e coloridas, e ruas estreitíssimas, chamadas de servidões. A sensação é de estar numa cidade do interior, mas com o axé dos mais malemolentes e extraordinários destinos nordestinos. Em Ribeirão da Ilha, fantasiava encontrar um Jorge Amado manezinho, escorado numa amendoeira qualquer, à beira mar, filosofando sobre os mistérios da vida e da morte, ao som de Caetano.
Nunca me senti em casa tão rápido. Vai ver que a ilha tem mesmo alguma magia. Um encanto que, quando lançado, é capaz de converter os mais céticos cosmopolitas. Afinal, como fingir indiferença diante de tamanho milagre?
Não sei se aqui é o meu lugar no mundo. Mas algo me diz que este pequeno pedaço de paraíso, cercado de Deus por todos os lados, vai me sacudir bem mais do que o famoso Vento Sul.
*leia crônica anterior para contexto.
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