Sala de espera em noite de natal – crônica de uma dor inesquecível
Nesses últimos dias, enquanto muitos comemoravam o Natal e o Ano Novo, estive às voltas com uma crise renal, cálculos nos rins.
Experimentei aquela que dizem ser uma das piores dores físicas, comparada por alguns com a dor do parto - coisa de que duvido; mito de homem, certamente, ou coisa do gênero.
Entre várias consultas médicas, diversas visitas a hospitais, agulhadas nos braços e nas mãos, soro, exames, náuseas, enjoos, vômito, cólicas, cólicas, cólicas e dores intermináveis, tive a oportunidade de refletir sobre a vida.
É interessante notar que daquela lista extensa de contatos do wathsapp - pessoas com as quais a gente conversa diariamente sobre trabalho, negócios, festas, eventos, problemas e soluções, pouquíssimos - muito poucos, mesmo – procuraram fazer contato pra discutir o assunto, nesses momentos. Os que permaneceram presentes na hora das cólicas, na hora do remédio, na hora da fixação do catéter - no braço direito; no braço esquerdo; na mão direita; na mão esquerda; no braço direito, de novo; no braço esquerdo, mais uma vez; não eram os mesmos da lista de contatos do whatsapp.
Na hora da assinatura do Termo de Compromisso, autorizando a realização do procedimento médico, o responsável pelo paciente, aquela pessoa que assume o compromisso de decidir sobre nossa vida e nossa morte é uma pessoa só; é um ser único. É aquela pessoa que divide com a gente o drama de autorizar, de aceitar que durante o procedimento consequências gravíssimas como a perda de um rim ou até a própria morte do paciente podem ocorrer. É muito bom saber que nesses momentos a gente pode contar com alguém, que assina por nós e que se apresenta como o nosso responsável – coisa linda!
É interessante observar que nessas horas de crise – literalmente, falando –, a gente vira uma espécie de garimpeiro, em busca daquela pedrinha dourada, aquele seicho minúsculo, de valor incalculável. Aquela joia magnífica que a gente garimpa, garimpa e garimpa, na expectativa de encontrar.
Nessas horas, nossa cultura se aprimora. A gente descobre que litotripsia extracorpórea, do grego lithos = pedra e trîpsis = esmagamento ou trituração, é uma técnica que remonta aos primeiros anos da década de 80 e procura “implodir ou triturar os cálculos que se formam no organismo por meio de ondas sonoras apropriadas, de modo a permitir que eles sejam expedidos pelas vias adequadas” – bonito, não é?
Nesses momentos, a gente se lembra de que tem dois rins e de que quando um deles não funciona a contento é um Deus-nos-acuda.
A gente fica sabendo que o nosso corpo é dotado de uma árvore urinária; a gente se lembra de que tem ureteres, uretra, rins, bexiga, e a gente descobre que o mal funcionamento de um só desses orgaozinhos pode nos causar um problemão.
A gente descobre que as aulas de Ciências – quanto tempo faz! – eram muito importantes.
A gente descobre que família é essencial.
A gente nota, triste, que alguns profissionais de saúde estão na profissão errada e que alguns deles são anjos enviados por Deus, à terra.
A gente descobre que a passagem do ano, no dia trinta e um de dezembro, e que a meia-noite do Natal, não têm importância se a nossa saúde não estiver bem.
A gente descobre o que é equilíbrio – descobre, também, que o equilíbrio do nosso corpo e de seus órgãos vitais é fundamental.
A gente consegue observar quantas batidas o nosso coração dá por minuto.
A gente para um pouco pra pensar em meio a essa correria das nossas vidas ...
Chegada a hora do procedimento para retirada da famigerada pedrinha, fui levado à sala de cirurgia. Abordado por enfermeira acostumada aos trâmites do procedimento que se avizinhava, recebi ordem expressa: “_ Os pertences do senhor têm que ficar lá fora, na sala de espera, com o acompanhante”.
Geralmente, o acompanhante não é aquela menina bonita da balada de sábado à noite. Normalmente, o acompanhante não é aquele companheiro que aparece na foto segurando o copo de cerveja das noites de festas.
Certamente, o acompanhante é uma pessoa que nos ama. No meu caso, havia duas pessoas lá fora, na sala de espera, graças a Deus, e pelo menos mais três, que ficaram em casa e não puderam ir comigo porque o hospital não permitiria a sua permanência, ali, mas que brigariam por ter ido.
“Os pertences do senhor têm que ficar lá fora, na sala de espera, com o acompanhante” – ordenou a enfermeira.
Para a sala de cirurgia não se leva nada – dinheiro, carteira, documentos, relógio, telefone celular, carro, chaves. Nada. Só entra com a gente a roupa do corpo. E, olha, que na hora do procedimento cirúrgico, nossa roupa também fica dobrada e jogada num canto, assistindo, impassiva, ao nosso sofrimento. Na hora do procedimento, só a gente e Deus.
É interessante notar que na sala de espera do procedimento cirúrgico, existem outros tantos, em situação pior do que a nossa.
Não me esqueço do Ramon, rapaz de pouca idade, assentado do meu lado direito, na entrada do bloco cirúrgico.
Eu, ali, tentando puxar conversa, em posição de vítima, arrisquei: Qual é o seu nome? “_ Ramon” – ele respondeu. _ Você também vai fazer cirurgia? Perguntei. _ Também está com pedra nos rins? Indaguei. “_ Não; eu já fiz quatro cirurgias para retirada de cálculos. Eu, na verdade, vim retirar um catéter que está, há vinte dias, no meu corpo, desde a última cirurgia que fiz”.
Pouco depois, o Ramon foi chamado pela enfermeira, e conduzido para o bloco cirúrgico, despedindo-se. _ O que dizer ao Ramon? Pensei – ao notar que a dimensão que eu mesmo dava ao meu problema não correspondia ao tamanho dele, ao notar que existe gente que já passou várias vezes, por problemas com dimensões um tanto maiores.
Nesses momentos de dificuldades, sentimos que existe alguém que parece se assentar ao nosso lado e nos acompanhar o tempo todo. Alguém, que geralmente é tão esquecido em nossas vidas, nesse momento surge de forma surpreendente; é invocado; é chamado; é cobrado, até; e, generosa e pacientemente, silencioso, se coloca ao nosso lado, e ali permanece até que o problema se resolva – e continua lá, mesmo depois que tudo passe, ainda que nós dele nos esqueçamos, como de costume - Deus.
É interessante notar que nesses processos dolorosos de nossas vidas, algumas pessoas que nos amam se retiram e ficam à distância, sofrendo o nosso sofrimento, porque sequer conseguem presenciar, de muito perto, a nossa dor. Há aqueles que, mais corajosos, se oferecem, e que, nervosos e agitados, nos ajudam, nos apoiam, não nos deixam, que se apresentam como alternativas, e que insistentemente repetem que o são, pra que não nos esqueçamos disso.
Não me esquecerei, jamais, daquele lindo par de olhos verdes arregalados, espantados, o tempo todo, preocupados, angustiados, daqueles lábios que a todo momento pediam a Deus pela recuperação do filho. Nunca me esquecerei daquele belo par de olhos verdes, que repetidas vezes me indagavam, em silêncio: “_ Melhorou meu filho”. Jamais me olvidarei daquele lindo par de olhos verdes, que em constante estado de oração torcia descaradamente pela minha vitória.
Sempre me recordarei, sem saudade, daqueles instantes dolorosos, das noites de insônia, das cólicas intermináveis, das dores infindáveis.
A partir de hoje, procurarei não me esquecer de que na sala de cirurgia nada acompanha o paciente. Todos os pertences pessoais ficam do lado de fora, na sala de espera, com o acompanhante.
A partir de agora, procurarei acumular quantidade menor de pertences pessoais e número maior de acompanhantes, ao longo do tempo que me resta nesta vida.