Gilda, os livros e Antônia
Um vazio, um sentimento de não estar, não mais ser. Era isso que eu sentia. Uma sensação de ausência, de estar fora. Sentir aquilo, acredite, me fez pensar: há outra possibilidade, outra perspectiva, outra maneira de existir sem que eu me sinta oca, vazia?
Ao ler essas palavras, Gilda, a triste menina, filha de mãe triste, casada com um homem triste, Gilda encontrava nos livros outras possibilidades de vivência. Pensou na menina acostumada em não estar. Pensou como era estar e não se ver nesse mundo que também lhe pertencia. Pensou na menina que transita por ruas e avenidas, que se mistura na multidão e não se sente parte. Pensou o que era sentir esse vazio. Esse sentir estar ausente como se nada mais, além dessa sensação de não estar, não existir, como tantas outras pessoas, pensou o que era isso? O que significava viver com a sensação de não viver. Com a dolorosa sensação de que não pertencer a esse mundo, também seu, embora, caótico, que transforma pessoas em coisas e coisas mais relevantes que pessoas?
A monotonia de uma vida que passa por passar. Que existe por obrigação de existir.
Ao contrário do que ensinam as fábricas de felicidades, as propagandas e programas matutinos com suas apresentadoras sempre felizes, a vida sem qualquer artimanha, é mais do que luta; é viver com a corda no pescoço o tempo todo, a todo tempo. É andar na beira do abismo, caminhar sobre areia movediça, como se tudo, a qualquer momento, pudesse ruir. Como se acontecesse sem importância, sem relação com o que acontece quando há um mínimo de conexão. É como se fossem as águas do rio, que avançam para o mar independente de sua vontade. A vida acontecendo como se tudo, ou nada, transcorresse num movimento perpétuo, como num móbile.
Desde que começou entender o ajuntamento das letras (assim ela descrevia suas primeiras leituras), Gilda encontrou nos livros a amizade que não sentia onde morava. Reconhecia a dureza do pai e da mãe para criar os filhos (talvez a falta de alegria fosse a falta de tempo de descanso, pensava). Por outro lado, não ignorava, que de tudo que lia, cada vez mais, e mais fortemente, era familiar ao que vivia.
Gilda, como um casulo a espera do momento certo para se transformar em borboleta, Gilda, nos livros, como se eles lhe servissem de abrigo, repousava toda esperança de conhecer outras terras.
Foi dos livros, amigos queridos e companheiros fiéis, que Gilda descobriu outros homens e suas histórias. Conheceu reis e guerreiros. E conheceu fortes mulheres, das quais, Gilda, a menina que transita por multidões e se sente só, das quais, não esquece Emma Goldman, mulher que nos idos do 19, defendia a independência da mulher e o direito ao aborto. E também Rosa, e Frida e Clara Zetkin, que num encontro do partido, anunciou o advento do fascismo e seu perigo. Foi num livro que viu "Precedido pelo clamor do seu nome" que a fez compor seu primeiro poema. (Precedido pelo clamor do seu nome/ o bom homem/ esquece de onde vem/ E como faz o bem porque é bom/ não deseja louvores, nem trombetas / faz porque é bom fazer o bem/ E sabe que fazer o bem, é bom).
Gilda, não sabia, mas vivia um paradoxo: ao mesmo tempo que se sentia só na multidão, buscava na multidão, ou o que sua percepção captava, as razões em se sentir só. Não atribuía nada específico para esse estado, mas, não conseguia entender como as pessoas agiam como seres autômatos. Como suas ações pareciam se processar sem um mínimo de questionamento. Gilda, sem saber, constatava que a sociedade entrava numa esfera conduzida por algoritmos e programas de "engajamento" social, cuja moeda de troca é a absorção de tudo que há nas redes. É a perda da identidade e da privacidade. É na vida em rede, vida de colmeia, que vê a sociedade perdida em relações fluidas e sem qualquer apreço sincero de amizade. A vida em rede, a vida de colmeia, só se realiza se notada pelo outro que, numa espécie de espelho, também só se realiza se notada por outro que também é o espelho que me olha. Uma vida efêmera, pensou Gilda.
Gilda, uma menina ativa e leitora de livros, também gostava de ouvir música. Uma, em particular, era, segunda ela própria dizia, o retrato acabado de uma sociedade robotizada. A música Another Brick in the Wall, imortalizada no filme homônimo, mostrava uma sociedade baseada num processo educacional a serviço da tecnicidade, uma educação sem apreço à crítica, ao questionamento como elemento fundante de uma sociedade crítica. Gilda, desde que ouviu pela primeira vez, não conseguia desvincular a música, e o quadro caótico que denunciava, com a multidão que via por ruas e avenidas. Em certo aspecto, Gilda se sentia uma estrangeira. Não reconhecia aquela sociedade como a mesma onde vivia. Para ela, a sociedade deveria ser o espaço onde as relações humanas acontecem, independente das premissas com cada qual de vê. Para ela, o dinamismo que norteia as relações, deveria ser o cerne, não deveria estar vinculado a interesses de grupos, governos ou organizações. Mas não era o que via. E nesse turbilhão de sensações, Gilda, a pobre menina que adora os livros, se sentia só.
Apesar do estresse e das inquietações, Gilda, a menina que descobriu, tão logo alçou os primeiros passos pelas ruas e avenidas da cidade, Gilda descobriu que suas inquietações também eram de muitas outras pessoas. Descobriu que a polivalência do mundo, e sua multifacetada configuração, eram outra face de uma mesma moeda. Descobriu que apesar das inquietações, era necessário, mesmo a um custo que ignorava, era nesse mundo que as coisas aconteciam. Não adiantava negar o que estava às claras. Apesar de tudo, das incongruências, das idiossincrasias, a descoberta dessas cáusticas revelações possibilitaram entender que era necessário resistir. Acreditar e investir na possibilidade do novo, eram modos de resistir para não sucumbir. Outro paradoxo, então, pensou por si. Como é possível estar na multidão e não se sentir parte? É possível estar mas sentir que não há nada que tenha alguma relação com o que sinto?
Mundo estranho, falava em pensamento consigo.
Comportamento de máquina, ou estado de vivência de "zona de máquina", leu num livro a frase que volta e meia lhe vem à mente. Impactada com o que pode significar, não esquece que a frase compunha a conclusão de um estudo (reproduzida no livro) onde as pessoas, jogadoras de caça -niqueis, eram levadas a um grau absurdo de compulsão (concluiu o estudo que entrar na zona de máquina, só era possível quando o jogador imergia nessa compulsão) onde as pessoas já não mais agiam por si. As ações acontecem de maneira em que as pessoas atingem um estado de esquecimento de si mesmas, até perder consciência de si. Gilda, ao se deparar com tal frase, e seu significado, assumiu a postura de querer entender como isso ocorre. Não ignorou o fato ( que passou a testemunhar) de as pessoas agirem feito robôs, feito máquinas, que executam as coisas sem se perguntarem, por quê?
O vazio. O oco como resultado de não existir, de não ver possibilidade de re(existir). Afinal, o que se passa do outro lado da ponte? O que se passa na próxima esquina quando à espreita, sem aviso prévio, sem anúncio, pode surgir o inesperado encontro com o inimigo? Tantas perguntas e tão poucas respostas. A única saída, talvez, a que sirva nessas ocasiões, seja deixar -se abandonar. Seguir como um barco solto às ondas sem obstáculos.
E Gilda, depois de um dia intenso. Depois de andar por ruas e avenidas. Depois de ver nas pessoas nada além de tristes figuras, Gilda, a menina que descobriu nos livros prazeres tão esquecidos das pessoas, que, numa determinada manhã de verão, como se tivesse pressa em viver, Gilda, a menina dos livros, ao pegar seu mais novo companheiro de viagem, outro livro recém adquirido de presente, Gilda sobe no ônibus a caminho da escola. Com as janelas abertas, o vento nos cabelos, vê a cidade passar, vê as pessoas passarem. Pensa no comportamento de máquina das pessoas , na música Another Brick in the Wall, nas fortes mulheres que povoam sua mente.
Um vazio. Um sentimento de não estar. A última frase, a derradeira. A que começa e termina. Gilda e Antonia, a menina do livro, duas possibilidades, duas perspectivas. Quantas Gildas, quantas Antonias? Gilda faz a pergunta. Não espera a resposta; dorme. O livro cai no chão.