Tiroliro, o sobrevivente

Julio Arthur Marques Nepomuceno (*)

-Nélo, pega o Tiroliro lá fora. Está trovejando, ventando, vai chover forte.

...................................

- Nélo, recolhe o Tiroliro que vai chover forte. Está surdo?

- Já vou, Vitório. Estou terminando de ler o jornal.

Vitório estava preocupado. Estava tomando banho, e ouvia os trovões, a ventania e sabia que ia chover forte. No quintal da casa, estava Tiroliro, o canário de estimação dos dois irmãos.

Vitório percebeu que o irmão não se mexia, o jornal devia estar muito interessante para ele. Enrolou-se em uma toalha e saiu no quintal, com o corpo ainda quente e ensaboado do banho, e foi recolher Tiroliro. Depois, voltou para o banheiro, de cara feia, passando perto do irmão.

- Ué, você não me pediu para ir? Por que essa pressa?

- Nélo, se eu for esperar sua boa vontade, o Tiroliro vai morrer de pneumonia!!!! Já estava começando a chover, e o coitado estava lá fora. E você não desgruda o olho do seu maldito jornal!!!!

- Velho ranzinza, pensou Nelo.

Era sempre assim. Sempre trocavam farpas por coisas pequenas. Os dois irmãos, septuagenários, moravam na ampla casa que tinham herdado dos pais. A única irmã casou e mudou, e raramente fazia uma visita.

Vitório, aposentado da Prefeitura, e Cornélio, o Nelo, sapateiro que agora só trabalhava esporadicamente, pois já havia feito seu pé de meia, não tinham casado e moravam sozinhos. Se amavam e se suportavam. Às vezes, discutiam. Às vezes, implicavam um com o outro. Mas uma coisa todos diziam: - um não vive sem o outro. Quando um morrer, o outro não aguenta uma semana.

Mas havia outro morador ilustre da casa. Tiroliro, o canário belga, já idoso – tinha 11 anos, cor de gema de ovo, que acordava os dois com um trinado bem característico logo que o sol dava as caras. Sim, o Tiroliro que foi resgatado pelo Vitório no dia da chuva.

Tiroliro era o queridinho dos velhos, e à medida que o bichinho envelhecia, mais se preocupavam com ele. Tinha direito a um ovo todo dia, alpiste à vontade e a canequinha de água estava sempre cheia. Os dois se revezavam para limpar a gaiola. Quando era o Vitório, a limpeza era feita logo de manhã. Nélo, mais preguiçoso, deixava para o fim da tarde, depois de ouvir as imprecações do irmão.

Os vizinhos diziam maldosamente que Tiroliro era a única preocupação da vida deles. Almoçavam e jantavam na pensão da d. Senhorinha, ao lado de sua casa, tinham uma vida regrada, tranquila, e raramente surgia algum imprevisto. D. Sinhorinha, por sinal, estava de olho na casa deles, para aumentar sua pensão. Já havia feito várias propostas, mas os irmãos não queriam vender o bem que haviam herdado dos pais. D. Senhorinha, cara de pau, chegou a propor um negócio: compraria a casa, mas só tomava posse dela depois da morte dos velhos.

- Bom negócio, disse Nelo. Vamos entrar numa bufunfa, e quando a gente morrer, ela dá um destino para a casa.

- Calma lá, disse Vitório. Precisamos fazer um contrato garantindo nosso direito à moradia até a morte dos dois. E vamos incluir uma cláusula, para que a dona Sinhorinha cuide do Tiroliro depois da nossa partida.

- Credo, Vitório. Você acha que nós vamos antes do Tiroliro?

- Eu prefiro,. Como vamos viver sem os trinados do Tiroliro para acordar a gente? Para quem vamos cozinhar os ovos? Para quem vamos dar alpiste, trocar a tijelinha de água?

- Não fale assim, Vitório, fico triste. Quero ir antes do Tiroliro. Agora fiquei deprimido. Culpa sua!

Bem, havia também alguns momentos em que aquela vidinha tranquila tinha seus agitos. Quando passava algum enterro em frente da casa, era uma diversão para os velhos. Naquele tempo, o defunto era velado em casa, e depois levado ao cemitério em procissão. Os dois ficavam atrás da janela, protegidos pela veneziana, espiando, à sorrelfa, quem passava. Sempre havia alguns comentários maldosos:

- Olha o Lica, como está velho. Acho que vai ser o próximo.

- Para com isso, Nelo. De repente o próximo é você.

- Te’sconjuro!

- A viúva está enxuta. Está chorando, mas viúva é que nem lenha verde, chora mas pega fogo!

- É, viúvo é o que morre.

E no fim, davam boas risadas...

Os vizinhos já conheciam esses hábitos dos irmãos. Sempre saia algum comentário, alguma maledicência, mas no final das contas deixavam pra lá. Afinal, gostavam deles, em especial as crianças.

Na porta da casa, à tarde, ouviam as crianças pedindo: -rezem pra mim, tenho prova de Matemática amanhã. Os velhinhos iam anotando os pedidos, e à noite rezavam o terço em intenção da criançada.

E assim a vida caminhava...

Alguns dias depois da chuva em que Tiroliro tinha sido resgatado, Vitório sentiu pontadas nas costas. Percebeu que alguma coisa não ia bem. Nelo ficou acabrunhado. D. Senhorinha ofereceu para fazer uma canja.

Mas no dia seguinte, os irmãos perceberam que a coisa era grave. Foram ao médico, que diagnosticou pneumonia. – Foi aquela maldita chuva, disse Nelo. Você não devia ter saído com o corpo quente. Vitório teve vontade de responder que a culpa era do Nelo e do seu maldito jornal, mas acabou ficando quieto.

Vitório ficou três dias no hospital, mas não resistiu. Nelo, inconsolável e se considerando culpado, dizia que logo ia acompanhar o irmão na eternidade.

E foi mesmo. Uma semana depois, Nelo, deprimido e sem conseguir se alimentar, deixou este mundo e foi ao encontro de Vitório. – Morreu de tristeza, diziam os vizinhos.

Tiroliro tornou-se o sobrevivente daquela velha casa. Continuou com seus trinados e privilégios, agora adotado por d. Sinhorinha.

(*) Julio Arthur Marques Nepomuceno sou eu.

Julio Arthur Marques Nepomuceno
Enviado por Julio Arthur Marques Nepomuceno em 13/03/2024
Reeditado em 15/03/2024
Código do texto: T8019050
Classificação de conteúdo: seguro