Bernardo, o pai da escrava Isaura

 

Aquela 20ª turma da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (atual Faculdade de Direito de São Paulo) rendeu muito para a literatura brasileira. Em destaque, dois imortais já mortos antes de adquirirem a imortalidade literária, os colegas e amigos Álvares de Azevedo (1831 - 1852) e Bernardo Guimarães (1825 - 1884) - fundadores da Sociedade Epicureia (1) -, ambos eleitos postumamente para a Academia Brasileira de Letras - ABL - em 1897. Já escrevemos aqui recentemente sobre Azevedo (Terça-feira é dia de Literatura), mas hoje nosso objeto é Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, mineiro autor de um dos mais famosos e bem sucedidos romances da literatura brasileira, A Escrava Isaura (Editora Garnier, 1875) - no dia 10 de março fez 140 anos de sua morte.

 

Já famoso pelo livro O Seminarista (1872), onde discute o celibato dos padres, em A Escrava Isaura, romance de cunho abolicionista, aborda basicamente a obsessão de Leôncio, rico e cruel fazendeiro, por sua escrava branca, Isaura. Com a sacada de colocar uma pessoa branca na condição de escrava, Guimarães quis chamar a atenção destes para a sordidez do regime escravocrata brasileiro, e conseguiu. O livro foi um campeão de vendas na época. Entretanto, o melhor estaria por vir, mas 100 anos depois. Aliás, Bernardo Guimarães teve essa sina: em vida, não viu a abolição de Escravatura (1888), a sua eleição para a ABL e seu livro virar novela de TV, tornando a história e seus personagens mundialmente conhecidos.

 

Há duas versões televisivas para A Escrava Isaura: Record TV (2004) e Globo (1976/77), mas foi a primeira a que, de longe, fez mais sucesso, uma adaptação escrita por Gilberto Braga (1945 - 2021) e dirigida por Herval Rossano (1935 - 2007) e Milton Gonçalves (1933 - 2022). Aliás, um sucesso estrondoso e inesperado no Brasil e mundo afora. A coisa foi tão grande que tornou a novela televisiva um elemento cultural brasileiro tão reconhecível lá fora como o futebol, o samba, o carnaval e a Bossa Nova. Exportada para mais de 100 países, foi no bloco comunista que obteve maior repercussão: na China, teve mais de um bilhão de espectadores e o livro vendeu cerca de 300 mil exemplares; na Rússia, a palavra fazenda passou a fazer parte do vocabulário; também em Cuba e na Polônia obteve muita repercussão.

 

Inicialmente exportada para a Suíça e a Itália, em 1979, tornou os protagonistas Rubens de Falco (1931 - 2008) e Lucélia Santos (1957) - foto acima - atores de fama internacional. Na Polônia, um concurso televisivo escolheu sósias para os astros, enquanto na China Lucélia foi a primeira atriz estrangeira a ganhar o Prêmio Águia de Ouro, obtendo 300 milhões de votos numa eleição popular. Em Cuba, os racionamentos de energia elétrica foram suspensos para que as pessoas pudessem assistir a novela e, durante a Guerra da Bósnia (1992 - 1995), Sérvia e Croácia faziam cessar-fogo durante os capítulos.

 

Embora os muitos padrastos ao longo de mais de um século (Rubens, Herval, Milton e Gilberto), o pai da escrava branca Isaura foi apenas Bernardo Guimarães, que ano que vem terá a passagem dos seus 200 anos de nascimento. Quando ele poderia imaginar todo esse sucesso? Aliás, quando ele e Azevedo, nas noites de bebedeira e putaria na Sociedade Epicureia, em seus tempos de jovens estudantes em São Paulo, poderiam supor todas as glórias póstumas que obteriam? O mundo tem o seu próprio tempo para nós e nosso legado, que não é o nosso tempo de vida.

 

Nota:

(1) - A Sociedade Epicureia, fundada em 1845 por alunos da São Francisco, era dedicada aos prazeres terrenos, regados a álcool e sexo, ao gosto dos jovens, orgiásticos e boêmios discípulos do filósofo grego Epicuro (341 - 270 a.C.), influenciados pelos textos do poeta inglês Lord Byron (1788 - 1824) - amigo do casal de escritores Percy (1792 - 1822) e Mary "Frankenstein" Shelley (1797 - 1851).

 

Referência:

MARTINS, Romeu. Medo imortal. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2019, 464 p.