O Abantesma
Julio Arthur Marques Nepomuceno (*)
Há cerca de um ano, eu voltava de meu torrão natal, passando por Campinas, onde faria a etapa final da viagem. Viajar de ônibus é assim. Não é uma linha reta. Primeiro, vai para São Paulo, depois Campinas e, finalmente, chega-se em casa. Mais parece cavalo de bêbado.
Sentado ao lado da janela, vi que uma senhora, após examinar o número da poltrona, sentou-se ao meu lado. Notei que estava aflita e lhe ofereci a minha poltrona, pensando que talvez ela pudesse se distrair um pouco olhando pela janelinha. Ela aceitou, agradeceu, e trocamos de lugar. Logo em seguida, ela começou a falar. Nos apresentamos. Não vou dizer o nome dela, pois este mundo é pequeno (eta, mundo véio sem portera, como dizia meu avô). Vou chama-la aqui pelo nome fictício de D. Tibúrcia.
D. Tibúrcia começou a me falar da razão do seu nervosismo e da viagem.
- É o abantesma que me assusta! Todas as noites, ele aparece para mim!!!!
Querendo ajudar, perguntei se fazia muito tempo que o tal do abantesma a perturbava.
- Mais de seis meses. Primeiro, ele só passava perto da minha cama com as asas (!) abertas...
- Asas?
- Asas. Ele mais parece um espectro, com duas saliências deformadas na costa, que eu chamo de asas. Mas não tem pena, não é uma ave... Muito menos um anjo. Cruz, credo, nunca vi anjo feio assim.
- Mas... A senhora já viu anjo?
- Olha, nem me lembro direito. Parece que vi quando era criança... Depois, só nas pinturas sacras.
- Ah, tá.
D. Tibúrcia me contou que era viúva de um funcionário público graduado, recebia uma boa pensão. Ela, por sua vez, era aposentada, e com as economias comprou uma casa em Campinas. Tiveram um filho, que morava em uma cidade da região, para onde estava indo (não me lembro se era Socorro, Águas de Lindóia ou Monte Sião...)
- Financeiramente, estou muito bem. Mas não aguento mais esse abantesma. Queria alguém – assim, na sua faixa de idade – que dormisse comigo, assim eu perderia esse medo.
Na dúvida se era uma cantada, fui logo dizendo que isso eu não poderia fazer por ela.
Mas D. Tibúrcia não se rendeu com a minha resposta, um tanto quanto seca, reconheço (e nem poderia responder de outra forma). Silêncio por alguns instantes...
Percebi então que duas moças, sentadas ao lado olhavam e riam da nossa conversa. Eu não gosto disso. Sei que cada um tem os seus dramas pessoais e as pessoas deveriam respeitar. Mas nem sempre é o que acontece. Talvez um dia as duas vejam abantesmas, também. Bem que merecem.
Mas não demorou muito e D. Tibúrcia voltou a falar do tal do abantesma. Disse-me que devia ser o espírito do seu finado marido, “de quem eu judiei muito, muito mesmo...agora voltou para acertar contas comigo, ..desgraçado!”.
-Imagine só, meu jovem (sim, ela disse isso para mim, um sexagenário), o chuveiro funciona sozinho na hora em que meu finado marido tomava banho.
Percebendo que devia ser um caso psicológico, recomendei-lhe um psiquiatra. Ela não gostou nem um pouco da recomendação e houve novo momento de silêncio. Pensei que a conversa tivesse acabado. Mas, não. Logo, D. Tibúrcia atacou novamente.
- Vou pra casa de meu filho, passar uns tempos. Abantesma não atravessa rio e lá eu vou ter um pouco de paz.
Não sei a que rio ela se referia, se o Camanducaia ou o Jaguari, mas fiquei matutando comigo mesmo se o tal do abantesma não encontraria um atalho ou se não seria capaz de atravessar uma ponte...
- Vou vender minha casa em Campinas e mudar, quero morar em uma casa que não tenha abantesma. Longe de Campinas, onde eu comece de novo a minha vida, onde eu não seja mais assombrada.
Quando cheguei em Amparo e me despedi de D. Tibúrcia pus-me a pensar sobre os medos que as pessoas carregam. Medos que aprisionam, que tiram a paz, que impedem uma pessoa de viver melhor, de ser feliz. Será que D. Tibúrcia não poderia fazer um acordo com o tal do abantesma? Ou, quem sabe, amizade?
Certa vez, conversei com uma moça que me disse que quando morria alguém conhecido, passava a noite toda no velório.
- Para confortar a família?
- Não, tenho medo de defunto, não consigo dormir sozinha depois. No velório, pelo menos tem mais gente!
Mas não são apenas fobias do sobrenatural. Muitos gastam suas vidas com medos estranhos. Minha avó tinha medo de chuva. No começo, apenas da trovoada. Depois, bastava um simples chuvisqueiro para ela entrar em pânico. Morreu com 77 anos e não teve tempo de perder o medo.
Conheci um vigilante de banco que tinha medo de ladrão. Tinha medo de morrer trocando tiro com um malfeitor. O seu mal estar chegou a tanto que, um dia, ele se matou na própria guarita do banco. Não precisou do ladrão para que seus temores se confirmassem...
Uma aluna do colegial, já com seus 16 anos, me contou que tinha medo de perder a virgindade. Eu retruquei, dizendo que se ela tinha medo de estupro, bastava tomar cuidado, não andar sozinha ou em ruas escuras.
- Não, professor. Tenho medo de perder a virgindade... de forma natural, assim, querendo. – Basta você não querer, arrematei. E ela: - é, mas tem uma hora que não dá mais para aguentar... Truco! Encerrei a conversa! É muito para a minha cabeça.
Anos depois, vi a mesma moça, agora ex-aluna, em uma loja, carregando três crianças. Procurando ser simpático, perguntei: - são seus filhos? – São, professor, respondeu ela orgulhosa. Pensei comigo mesmo: perdeu o medo!
E eu, escrevendo este texto, nem percebi que o tempo passou. Já é meia noite. Hoje, estou sozinho em casa. Mas...peraí... Sozinho mesmo? Quem está fazendo barulho na cozinha? E agora, quem ligou o chuveiro? Que medão!!! Gente, vou dormir. Fui!!!!
(*) Julio Arthur Marques Nepomuceno sou eu