Uma desculpa para escrever
Não existe “gênero textual” em absoluto, no máximo concordamos sobre o que é ou não um texto, um conto, uma crônica ou qualquer tipo de história. O que há são convenções.
Por mais que alguém fique chateado de eu não separar “história” de “estória”, é bom lembrar que essa segunda palavra é uma invenção e que todo fato narrado, ainda que fato, é narrado por alguém.
Inventamos e observamos a partir de nossas perspectivas e intenções. Há quem considere indecoroso o jeito natural empírico e autodidata da vida, buscando se justificar pelo que denota ou entende como “científico”. Agora, como chegou nisso sem ser pela experimentação, eu não sei, mas admite algum tipo de “epifania metafísica”. Não acredita que o cosmos tem voz, mas tudo bem receber mensagens e elucidações do caldeirão primordial. Que coisa.
Além disso, etiquetar textos pode ajudar em nada e ainda causar confusão.
Se conformamos um texto a um gênero também isso pode manifestar viés ou preconceito — no sentido de ser uma ideia fixa da qual não conseguimos nos livrar e talvez nem a percebemos assim.
Além de relativa, a ideia de “gênero textual” é apenas uma maneira de nos ajudar a notar certas características. No máximo podemos classificar um texto a partir de uma noção do que seria predominante nele; qual foi a última vez que alguém comprou um livro pela sua diagramação e estrutura, não pelo seu conteúdo ou pretexto?
Não que isso não possa acontecer, mas porque estamos lendo este, por exemplo, ou porque ele foi feito? Porque sim, veja bem, começamos apenas com uma “desculpa para escrever”, do tipo tão sem vergonha que usa o próprio título como frase de efeito bem no meio dele. Não sem motivo, logo percebemos precisar de outra desculpa se quisermos continuar escrevendo.
Apelar para a falta de conteúdo em si não é de todo mal. Essa falta pode começar como algo simples e bobo — e que bom texto não é assim, como observar uma conversa entre dois burros ou tirando dúvidas com um mestre imaginário?
Apontando para a mais aparente falta que há numa página em branco, por exemplo, apesar de a folha ter sido feita para ser assim, o que fazemos é imaginar, abstrair e inventar o que pôr ali; as possibilidades do uso do que vemos como falta dependem da criatividade, inventividade e até do impulso.
Todo ato criativo é uma constante determinação do que queremos.
Se queremos ser filosóficos no tratamento dessa aparente falta, por exemplo, ela será algo como uma falta pessoal ou coletiva, que se apresenta como desejo segundo os mais aristotélicos ou leva a um fim inevitável segundo os mais pessimistas.
O pretexto trata a falta sem desculpas e não se vê abandonado na companhia do desinteresse, porque para ele o importante é realizar-se. Há no pretexto despretensão como também a abertura para deixar-se admirar por seja-lá-o-que-for. As mesmas coisas que todos deveriam praticar para uma vida bem-vivida.
Se a falta não é falha e é modulada para assumir outras funções como a de contexto, assim ela nos permite trabalhar outros recursos e assuntos, como a repetição do que foi dito só que com outras palavras.
Ela (a repetição) é sempre simpática e se presta a auxiliar quem escreve cobrindo até as faltas (talvez não propositais) que estão para além do texto. Ela ajuda, mas não é nenhuma “milagrera”, se as faltas forem muitas vão acabar por ficar à amostra de qualquer maneira.
A questão é que a falta, assim como uma boa proposta de diálogo, prosa, leitura ou papo, funciona bem conforme é tratada bem. A sensação agradável que transparece de algo simples e bem feito gera conforto, interesse e reciprocidade. E, de repente, uma desculpa nos leva a falta como assunto e um encontro sobre como viver melhor.