A crônica é crônica
A crônica é um texto que parte de um pretexto. Algo assim só leva em conta duas coisas: ser despretensioso e interessante — há quem chame isso, acertadamente, de autenticidade.
Como chamá-la de “literária”? Se um texto é literário, normalmente, a intenção do autor deve se encontrar oculta, se não escondida, se não sufocada —, mas, pelo bem do texto livre e autônomo, — ausente na narrativa ou com essa impressão.
Não há texto que não seja criado a partir da intenção autoral, mas a intervenção que se torna invasão no plano da história faz dela o Hypokrités (“máscara”) do enxerido e daquele que busca estabelecer a sua voz e opinião sobre a dos próprios personagens — esse comete um sacrilégio literário e está longe do profissionalismo. Se isso é feio numa conversa ou discurso, também o é em um texto.
Um texto para ser literário, aliás, tem que ser aprovado por certas convenções e formas de escrita. Há os que não admitirão, mas a “liberdade literária” assim como a tal da “licença poética” é o que se convenciona assim, ou seja, se for conveniente pode ser tratado assim. Em toda a literatura se estabelecem parâmetros para que o conteúdo não se desencontre com o que se quer escrever.
Ainda que todo texto possa levar em conta alguma experimentação, como o Mário nos diz — o de Andrade, a quem pergunta —, podemos chamar qualquer texto que quisermos de conto e ele o será. Verdade? Nem sempre, mas eis aí o exemplo da necessidade de criar parâmetros na literatura. Em outras palavras, somos capazes de criar rótulos, mas isso não é coisa tão surpreendente. Há rótulos sem razão de ser.
Há na literatura tudo o que a crônica parece contradizer e isso sem tentar brigar ou discutir, apenas por ela naturalmente ser; ao menos a tipicamente brasileira. Na crônica, o pretexto anda à descoberto, mas longe de ser algo sem vergonha, é incrivelmente honesto, atravessa o texto inteiro e se faz tema e assunto. Não é assim na literatura.
Na literatura ou (texto literário) a intenção do autor se projeta no objetivo da narrativa que quando bem executada se estabelece através da própria estrutura textual e orienta todos os seus aspectos. Faz dela inteira um easter egg. Coisa que não é fácil de se fazer e que propõe uma identidade para o texto diante da sua recepção.
Enquanto o texto literário tenta achar um caminho entre as contradições técnicas e teóricas, a crônica nem parece se importar com isso, aceita qualquer estilo, por mais prosaico ou lírico que seja e aparentemente trabalha com qualquer assunto, incluindo a falta dele. Em relação à recepção tem esse gosto de convidativo, não de imersivo.
Para que tramas ou diálogos? O pretexto que também é assunto nos dá tudo o que é necessário. Quer algo mais filosófico, científico, humorístico, cotidiano ou fantasioso? Ela é capaz de lidar com qualquer tema sem precisar de adaptações.
Quem maltrata ou destrata a crônica, o faz por medo ou cinismo. Muitos críticos e escritores acham que há a necessidade de determinar e definir tudo em um texto arquitetando teorias e convenções, sendo que o texto literário mesmo não finge saber o que não sabe e vai, no máximo, até onde consegue dar algum parecer.
Novamente, enfim, há textos nos quais nos preocupamos com o que e como escrever, e outros nos quais não — não confundindo isso com qualquer tipo indecente de procrastinação e equívocos do que apelidam como fluxo narrativo ou escrita automática que muitas vezes não. Outro assunto.
Na crônica há alívio, na literatura há tensão.