Tapas da paixão

Intervalo do jogo. O time da casa perdia por cinco a zero e o atacante, comprado a peso de ouro, não disse a que veio. Ciente do fato, o treinador resolveu conversar com o jogador em particular.

- Marimba, está tudo bem?

- Sim, fessô.

- Certeza? Você só tocou na bola três vezes no primeiro tempo. Na primeira, o chute atravessou a rua e atingiu janela do apartamento 702 do Edifício Galápagos.

- Quanta precisão!

- Minha avó mora lá. Ela tem um periquito que fica na janela. Não sei se você viu, mas o coitado voou longe com a bolada que recebeu.

- É, errei o gol por pouco.

- Por pouco?? O time deles é tão vagabundo que o goleiro está com a perna engessada, reparou? Mesmo assim, ele não fez uma defesa sequer!

- Sabe o que acontece, fessô...firmei parceria com uma ficante no forró. Ficante, não. Aprendiz de paquera. Melhor, trainee de peguete. Ah, você entendeu!

- Ih, cuidado com esse rabo de saia...

- E ela está querendo terminar comigo só porque sou terceiro atacante reserva!

- Contratado em cima da hora e por um valor caríssimo!

- Quinhentos reais de contrato por cinco jogos mais três galetos e uma garrafa de cachaça. Esse é o valor caríssimo?

- O goleiro reserva foi comprado por uma cavaca e dois Todynhos.

- Eu sei, mas a questão é que não tô feliz com esse negócio. Queria sair do time.

- Sua namorada não lhe quer por causa do "tô". Aprenda a falar direito. Aposto que você a chama de "mô".

- Bibelô.

- Cruzes! E você ainda acha que é por causa do time!

- Somos os últimos colocados da oitava divisão do campeonato de várzea! A coisa é tão ruim que não existe rebaixamento! Moramos no fundo do poço há tempos! Só falta pagar IPTU! Somos o capim seco do jumento manco de um cangaceiro míope de pai e mãe!

- Ok, e o que você vai fazer se deixar o time? Voltar a trabalhar como camelô?

- Com prazer! Em um dia como camelô, recebo mais do que em cinco jogos como atacante!

- Vendendo bala, chiclete e jujuba?

- Na porta do consultório da dentista! Sabe como é: vendendo doces, arrumo vários clientes para ela! E ganho para isso!

- Bom, não vou lhe impedir. Se quiser sair, po...

Nisso, alguém quebrou metade da porta do vestiário improvisado com um chute. Era Mermâide, namorada do atacante, mais barraqueira que maribondo-fêmea na TPM.

- Que papelão, hein!

- Fessô, essa é minha dignissima, Mermâide.

- Encantado.

- Eu não! Estou desencantada com esse time e com a atuação do meu marido!

- Ué, ele me disse que vocês são namorad....

- (interrompendo, num sussurro desesperado) Shhhh!! Fecha o bico...

- Nós somos o quê, Marimba?

- Ele me disse que você era ficante.

- Como é?? – berrou ela.

- Aprendiz de paquera – emendou o treinador.

- Marimba!!

- Trainee de peguete– prosseguiu o treinador.

- Quer dizer que sou um nada para você?

- “Nada”, não. Ele me disse que você é “acompanhante improvisada de uma gambiarra sentimental.”

- Eu não disse isso!!!

- Estou resumindo.

De imediato, Mermâide, que nunca teve sangue de barata, sentou a mão no focinho do (agora) ex-qualquer coisa. Paft!! O tabefe foi tão estridente que até o pipoqueiro presente na entrada do estádio ouviu. Mas a coisa não ficou só nisso. Irritadíssima com as verdades reveladas sem um pingo de piedade, ela não pensou duas vezes e carimbou os dedos no rosto do treinador. Poft!!

- Eu não fiz nada!!

- Você foi conivente! Além disso, o time não tem tática! É um bando correndo atrás da bola sem uma jogada ensaiada sequer!

Depois de esquentar a mão e os rostos da dupla, Mermâide saiu do local chutando o resto da porta com a potência que o zagueiro titular daquele time nunca teve. Atônito e com o lado do rosto ainda pinicando, Marimba soltou os cachorros para cima do técnico.

- Seu amigo da onça! Traidor! Eu disse tudo aquilo para você! Era segredo! E agora, perdi a mulher por sua causa!

- "Por minha causa", não. Você a perdeu para mim! Aquela bofetada aqueceu um sentimento gostoso! Estou apaixonado! Mermâide!! Te dou casa, comida, cerveja, louça lavada e roupa passada!!!

E não é que o treinador abandonou o time e saiu correndo atrás da bofeteira?

A paixão tem origens estranhas.

Edu Soares

Barão do Subúrbio
Enviado por Barão do Subúrbio em 06/03/2024
Código do texto: T8014150
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