Pegando um ônibus

O sol crispava sobre as esquadrias das janelas próximas, então eu desviava a vista. Parado embaixo de uma árvore, eu, em pé, esperava pelo ônibus que me levaria para o centro da cidade. Uma idosa a meu lado, com sorriso simples, perguntava as horas e o itinerário dos ônibus que ali deveriam passar. Eu cordialmente respondia. Havia contas a serem pagas, contas de casa, e à hora do almoço eu era a semelhança da estaca azul e branca da CMTO*.

Enfim, o ônibus “002 Vila Yara” rompeu aquela barreira de raios cegantes do sol e estacionou com a porta se abrindo.

Dei passagem à idosa que, com certa dificuldade, galgou os três degraus da escadinha; seguida por mim, cujos olhos eram ligeiros em ver quem estava no veículo. Fitava os velhinhos da parte da frente, que me devolviam olhares cansados e amenos. Me encantam as grandes e enrugadas orelhas deles.

Dei alguns passos e parei diante do cobrador. Era um senhor idoso também, de cabelos tingidos de preto e olhos notavelmente azuis. O cobrador tinha uma grande semelhança com o Moe, dos Três Patetas… Porém, juro que não ri. Entreguei-lhe o dinheiro e passei a catraca.

Os passageiros do lado direito quase sumiam, envolvidos pela luz misericordiosa do sol daquele dia, e olhavam para fora. Sentei-me mais ou menos no meio do ônibus. Eu estava, por algum motivo misterioso, muito contente e leve naquele dia.

Só se ouvia o roncar duro do motor e a tampa da caixa do cobrador, que relanceava o olhar de vez em quando a nós, passageiros, para depois voltar a reunir os bilhetes com elásticos.

Era quase Páscoa, e ela se fazia sentir nas lojas, apinhadas de gente que pretende apenas olhar as promoções e acabam levando algo para casa.

A vida numa grande cidade, em meio à dureza do concreto e da velocidade, deixa em nós uma insone sensação de impermanência e esquecimento. Só que naquele dia, não pensei nisso.

Para onde olhava, havia a multidão de coelhinhos expostos por conta da data. Observei a variedade de tamanhos, cores, expressões, feitios dos bonecos e em como representam os sonhos de quem os concebeu… Quem acha que os sonhos estão em falta, se engana. Basta sair à rua para encontrar decorações variadas e coloridas.

É possível inclusive detectar o estado da criança que vive na alma das pessoas que desenham e produzem os personagens. Como foi a infância dessas pessoas, se deixou marcas boas… Uma “compaixão engraçada” se move para fora, do fundo de minha alma, muito maior do que qualquer coelho gigante que pendurem numa fachada.

Um pequeno número vê nessas ocasiões apenas apelos desesperados de consumismo, “ter em vez de ser”, frieza, egoísmo, gastança. Porém, naquele dia, não pensei nisso.

Além das aparências, a vida é farta, mesmo em meio a dores e oscilações. Nenhum megaesquema publicitário consegue derreter isso. O comércio e a publicidade tentam nos persuadir de que são profundamente identificados com a vida, ao ponto de querer que aceitemos que a vida é farta, alegre e acolhedora devido ao comércio e a propaganda — ainda bem que naquele dia eu estava misteriosamente contente, e não pensei nisso.

Era outono e, por isso, o sol não estava tão causticante. Assim, o ônibus seguia a caminho do centro de Osasco, com Moe Howard como cobrador. A certa altura, um vulto embarcou. Um senhor, de estatura média, corpo troncudo, barba dura, crescida, mas falhada, olhos grandes e um tanto saltados, dentro de um jaquetão escuro. Não me lembro se ele era mesmo gordo, mas sua figura sugeria rotundez. O nariz era curto e batatudo. Parecia um personagem saído de algum quadro de Brueghel ou Caravaggio.

Ah, talvez um monge copista, em plena Osasco de comemorações da Paixão de Jesus... Ele pagou e empurrou a catraca, segurando-se com as mãos grossas nas barras e logo passou por mim, sentando-se ao fundo do coletivo. Imaginei mil coisas a respeito dele. Perdi-me em idealizações de mosteiros medievais, com os monges em fila para a hora da refeição. Aqueles homens-sino com seus hábitos grossos, sandálias, crucifixos, imagens de Nossa Senhora nos recintos, cânticos em latim, o Santíssimo exposto e todos em vigília noturna, hortas, pomares, celeiros, lagares, cervejas, salas de estudo silenciosas…

Meu ponto se aproximava e pedi passagem à mulher que estava no assento para o corredor. Achei graça que o “homem-sino” ia descer no mesmo ponto! Havia mais passageiros a descer além de nós. O motorista freou, a porta foi aberta, e o homem deslizou para fora. Num instante, olhei de novo e o “homem-sino” já havia atravessado a rua. Mais outro instante, o semáforo fechou para nós, os pedestres. Eu fiquei. Os carros tomaram a rua.

Esperei o farol esverdear e segui. O “homem-sino” dobrara a Rua João Batista, na esquina com a loja de equipamentos de jogos de salão. Foram poucos os segundos que o colocaram à minha frente e o “homem-sino”, que não deveria ser tão ágil, sumiu em meio à multidão naquela segunda-feira.

A vida é engraçada… ou, melhor dizendo, as pessoas são engraçadas — muitas vezes, sem querer. Eu estava, por algum motivo misterioso, muito contente e leve naquele dia.

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O primeiro rascunho dessa crônica é de 21 de junho de 2001. Escrevi essas linhas, por certo, em Bauru, num momento de grande saudade de Osasco. Baseado em uma segunda-feira real de Quaresma, já há muito perdida no tempo.

*CMTO - Companhia Municipal de Transportes de Osasco

Rafael Aparecido
Enviado por Rafael Aparecido em 06/03/2024
Reeditado em 16/03/2024
Código do texto: T8013959
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