Trevisan no supermercado

Sexta-feira. Vou a um supermercado que fica em Brotas. Criei um hábito. Toda semana vou nesse estabelecimento para comprar alguma coisa: normalmente é uma garrafa de refrigerante ou macarrão instantâneo. Mas hoje vou prestar mais atenção em outras seções. É um mercado que fica um pouco distante de casa. Há outros mais próximos. No entanto, eu vou até lá só para poder fazer exercício físico no caminho. Andar é bom.

Depois de caminhar 1,3 km, chego no supermercado. No estacionamento, um carro para e duas pessoas saem: um homem e uma mulher. O homem é gordo, imenso, possui um traço imponente e é calvo. Lembra o Tony Soprano. A mulher parece ser esposa. Linda e aparentemente mais jovem que ele. Ambos entraram logo depois de mim.

O casal parou para conversar com alguém e eu fui para a seção de higiene, que fica próxima à entrada/saída do estabelecimento. Enquanto me distraía escolhendo cuidadosamente a marca do papel higiênico, uma muvuca teve início. Não era uma briga feia. Longe disso. Era um bate-boca entre o homem que parece Tony e o segurança. Não consegui entender o motivo da briga.

- Você viu se fui eu? VOCÊ VIU? - perguntou o homem, aumentando o tom de voz.

- Se acontecer de novo, vou ter que pedir para você se retirar. - respondeu o segurança.

- Ah, é?

- Eduardo… Amor… - disse a esposa, tentando tirar o marido da discussão. Ela foi bem-sucedida nisso.

Porém, escutei o homem dizer baixinho: “ele vai ver”.

Depois de passar o olho nas prateleiras com material de limpeza, vou à parte que interessa: a seção onde fica bebidas. Olho para garrafas de vinho, de rum, de saquê, de cachaça… Dá vontade de comprar tudo. Mas não compro. Levo só o refrigerante.

Vou para a fila. Há cinco caixas. Duas são reservadas aos clientes preferenciais. E elas podem ficar, mesmo que por um momento, sem nenhum cliente. Todavia, há espertinhos (não são "preferenciais") que sempre conseguem usá-las. São os “talentosos”. Andar pelo supermercado é uma arte. Requer a combinação de cuidado, velocidade e malícia. Requer a capacidade de perceber qual caixa está mais rápido. Escolho uma fila. Depois de 10 minutos sem essa mesma fila andar, percebo que não sou capaz de notar qual atendente é a mais veloz.

Atrás de mim estão uma senhora e uma moça mais nova. Conversam e mudam de assunto rapidamente. Com a lentidão da fila, não é exagero dizer que elas poderiam falar de centenas de assuntos ali mesmo.

Foi então que deram início a uma conversa estarrecedora. Antes que o raro leitor me acuse de "escutar o papo alheio", me defendo: do jeito que elas conversavam, impossível não ouvir. E se quisessem privacidade para um tema tão sensível, não estariam falando disso numa fila de mercado.

A senhora contou que, no interior da Bahia, um homem espancou a esposa na primeira noite que passaram juntos. O motivo: “não era moça”, segundo as palavras de quem contava o relato. Depois disso, o agressor teria entrado em depressão e estava cada vez mais violento. Até que um dia ele torturou física e psicologicamente a mulher, para que contasse quem foi o homem que a deixou “impura”. Ela contou que foi um cara que vivia frequentando um específico bar na cidade. O marido foi ao bar e esfaqueou o cara. Na região, comentava-se que talvez a vítima fosse inocente. A mulher teria dado “qualquer nome” ao marido para que ele parasse de machucá-la.

Não ouvi o resto da história. Entretanto, isso me deixou reflexivo. Parece até enredo de um conto de Dalton Trevisan. Um dos motivos que tornam Trevisan um clássico da literatura nacional é a sua capacidade de descrever fidedignamente como eram os valores da sociedade brasileira há uns 60 anos. Quem lê o autor curitibano passa a entender como eram as entranhas de relações conjugais daquele tempo. Há situações que hoje consideraríamos bárbaras, mas que eram "toleráveis" naquela época. Percebe-se também que os direitos das mulheres avançaram bastante. Mesmo assim, ainda existem "buracos da História", em que acontecem coisas como o evento ambientado no interior baiano. Durante a minha reflexão, a fila andava e estava chegando minha vez.

Vou ser atendido. No outro caixa, vejo o homem parecido com Tony Soprano e sua esposa. Ele chegou nas filas depois de mim e está sendo atendido ao mesmo tempo que eu. Ou seja, ele domina a arte de andar pelo supermercado.

Na hora do pagamento, ele tira um bolo de dinheiro do bolso e paga. Enquanto contava o dinheiro, comecei a cogitar sobre a possibilidade de ele ser realmente um gângster. O crime organizado curte dinheiro vivo. Ou talvez ele só fosse um homem honesto que se exaltou por um momento. E pagar comprinhas no mercado com dinheiro vivo não prova que alguém é criminoso.

Duas semanas depois, soube que o segurança, que discutiu com o homem, foi encontrado morto.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 01/03/2024
Reeditado em 02/03/2024
Código do texto: T8010758
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