Dois Chiles e Duas Anas
Viajar é uma experiência multi sensorial. Pelo menos para mim, dentro das minhas expectativas. Busco a gastronomia do local, o modo como as pessoas daquele lugar vivem e o que posso aprender com isso, além da beleza das paisagens. São algumas das impressões que permanecem, mesmo com o fim da viagem. São memórias e aprendizados que se tornam uma bagagem.
Dos poucos países por onde passei: Itália, Argentina, Uruguai, República Dominicana, Turquia e Chile, estive por mais de uma vez nesse último. Na primeira viagem, em 2017 e sozinha. Em 2022, acompanhada. Impressionante como ambas experiências retrataram momentos diferentes, não apenas na minha vida, mas no contexto em que o país se encontrava. E confesso que me agradou muito mais a primeira. Não me considero uma pessoa politizada, embora tenha plena consciência da necessidade da política, procuro me manter a margem dela. Porém, impossível deixar de relatar o que vi e senti de perto nas duas ocasiões em que estive no Chile. Em 2017, o país se encontrava em um momento político predominantemente de visão conservadora, mais voltado para a política de Direita. Era possível perceber uma economia equilibrada, moeda forte, preços não inflacionados e ao andar na rua me sentia segura. Ruas limpas, prédios públicos bonitos, conservados e sem aspecto de vandalismo. Lembrando: eu viajei sozinha - não era sequer um grupo de excursão. Comprei minhas próprias passagens e pesquisei um local pelo aplicativo Air BNB, reservando um studio no Bairro Providencia, um dos melhores de Santiago. Andei de Uber, sozinha, em plena madrugada. Parece loucura não? Porque na cidade onde vivo, aqui no Brasil, no interior de Goiás, não tenho coragem para tal, mesmo sendo policial. Mas lá me senti segura para fazer isso. Andei de metrô por várias vezes em Santiago, uma metrópole comparada à cidade de São Paulo, em aspectos de densidade populacional. Foi uma viagem incrível, conheci pessoas, entre elas brasileiros que também estavam de passagem. E também pessoas de outras nacionalidades, como uma argentina e uma irlandesa, que também viajavam a sós. Conheci um chileno muito interessante, que coincidentemente já havia sido casado com uma brasileira. Boas conversas, boas companhias e bons aprendizados. Paisagens belíssimas pela Cordilheira dos Andes e pelo litoral também, onde se situa Valparaíso e Viña del Mar. Foram 6 dias em Santiago. Parece tão pouco tempo, para quem está de fora, mas para mim é como se o tempo cronológico não correspondesse ao que foi vivido nesse mesmo intervalo. Um banho em águas termais de quase 70º, provenientes de um vulcão adormecido, com direito a uma impressionante vista das Cordilheiras. Um piquenique com degustação de vinhos, também em meio às Cordilheiras. Um visita à Vinícola Concha Y Toro, conhecendo as parreiras, produção e armazenamento de um dos vinhos mais bem conceituados do mundo. E diga-se de passagem, os vinhos chilenos merecem um capítulo à parte. Bem longe de entender profundamente de vinhos, mas o solo chileno possui algo de especial em sua composição, o que confere aos seus vinhos um sabor marcante e único, típico da região.
Fiz um tour pelo Teleférico, tendo o privilégio da vista aérea e panorâmica da cidade. Tão panorâmica quanto foi a vista do alto do Sky Costanera, com seus 300 metros de altura, o que lhe confere ainda o título de prédio mais alto da América Latina. Um pôr do sol inesquecível, lá fiquei por quase duas horas, admirando a paisagem e a imponente vista das Cordilheiras, que abraçam a cidade de Santiago. Esta foi a experiência de 2017.
Em 2022, resolvi voltar a Santiago, nas expectativa de que tal experiência seria tão boa quanto a primeira, ou quem sabe até melhor. Infelizmente, não foi. O contexto político vivido nesse último momento influenciou muito, e de forma negativa. Já no primeiro dia em Santiago, ao andar pelas ruas, percebi de imediato uma grande diferença: os prédios, antes tão bem conservados, agora encontravam-se completamente vandalizados, repletos de pichações, com dizeres ofensivos, de cunho político e ideológico, fazendo explícitas alusões à defesa do aborto, com imagens que transmitiam vulgaridade e violência. Deprimente. E isso não era em um prédio ou outro, era por toda parte. Igrejas católicas históricas haviam sido completamente destruídas, o clima era de pós guerra. Digo isso sem dramatização ou exagero, foi o que vi de perto. Para meu azar, descobri que no dia seguinte haveria uma grande manifestação nas principais ruas, devido a um plebiscito que levaria o povo chileno às urnas, sobre um assunto que dizia respeito a uma importante alteração constitucional. Isso foi o que o motorista do Uber me explicou e inclusive alertou, de maneira categórica: não saia do hotel amanhã, para sua própria segurança. E adivinhem. Eu desobedeci a sábia advertência, menosprezando a gravidade da situação. Saí para comer e imaginei que nada demais aconteceria. Porém, além do grande congestionamento no trânsito, percebi que as tropas de choque estavam nas ruas, na tentativa de dispersar uma multidão de pessoas rebeldes e ignorantes, jogando jatos de água e bombas de efeito moral. Um cenário de guerra civil. Meu namorado e eu entramos em um fast food local que estava prestes a se fechar, e pela caridade dos atendentes, percebendo nosso pânico, nos deixaram ficar e baixaram as portas de aço - fato que nos deu um grande alívio. Mas ainda assim era possível ouvir os gritos, pessoas vandalizando as ruas, ateando fogo em ônibus, confrontando a polícia a poucos metros dali, batendo com objetos nas portas dos estabelecimentos, tentando abri-los e inclusive, saquear os locais.
Confesso que senti muito medo, por ser estrangeira e por estar ali de maneira tão vulnerável. A sensação foi oposta à da primeira visita ao país: já não havia segurança, nem respeito, nem a beleza de antes.
Não é a minha intenção aqui levantar uma bandeira política. Mas vi de perto as consequências de um fanatismo político que se implantou em tão pouco tempo - apenas cinco anos separaram uma experiência da outra. O mesmo local. Ironicamente antes, mesmo estando desacompanhada, eu estava segura. Não somente isso, mas era perceptível que a economia do país também havia sido gravemente afetada. Conheci dois Chiles. Este último vivia uma crise generalizada: econômica, social, cultural e principalmente política. E também duas Anas, em momentos completamente diferentes. Ambos me ensinaram muito sobre mim mesma.