O pássaro e a nostalgia

Eu escorria às horas na pracinha com os meus pais, enquanto com um sorvete saboreava a delícia de ser criança. Nas vespertinas de sexta-feira, acompanhado por minha mãe, íamos à clínica de reabilitação ver o meu pai. Eu tinha uma leve consciência dos problemas ao redor: meu pai se embriagava com aguardente, a qual sua garganta, quando escorrida pelo seu vício, trazia um desagrado pela casa. Lembro-me de histórias marcadas por problemas, e percebo a anuência dele. Sua ética conosco nos deixava sob a corda bamba da estabilidade emocional. Vivia passando vergonha na rua chamando a atenção. Seu alcoolismo era incômodo, porém suportável, pelo menos eu me sentia assim no passado. Como uma criança tola, meu mundo era sedimentado pela tevê, pelo videogame e pela escola. Mal sabia das consequências no entardecer da vida, quando tais memórias podem escurecer boas lembranças.

Tenho certa nostalgia de passear na pracinha com eles, comer alguma coisa enquanto corria até os pássaros, na ingênua tentativa de botá-los no meu colo. O tempo era de sol, mas uma quentura fresca. Na época buscávamos ele na clínica e logo em seguida passeávamos no centro da cidade. Nas ruas passavam muita gente, algumas apressadas, outras nem tanto. Todas rente a algum objetivo. Mas eu não! Eu estava contemplado, por quem me olhava, em um êxtase de felicidade desmedida. Olhava-os distante enquanto conversavam, imaginando os assuntos que se tratavam. Com certeza era algo mais ameno, porque havia uma calmaria retumbante naquelas tardes.

Em frente a praça havia uma igreja católica, com pessoas entrando e outras saindo. Era bonito o som que saía dela, eu sentia uma paz enorme. O sino badalava, e mais pessoas alinhavam os passos naquele asfalto quente. Um falatório misturado com a mesmice do centro: buzinas, o sorveteiro passando, carros emitindo seus poluentes, gente chamando mais gente batendo papo numa altura incômoda.

Certo acontecimento recordo como se o sentisse hoje. Numa dessas aconchegantes tardes vi um filhote de pardal perambulando a praça. Ele estava só, dando fofos e agitados pulinhos no chão, na tentativa de estimular seu voo. Meu coração puro como também o dele sentiu o ímpeto de pegá-lo na mão, mas ele escapulia com pequenos lampejos de suas asas para fora de mim. Tentei, tentei, mas nada, era um ser muito que esperto. Porém, uma tragédia emergiu em dado momento: ele acabou voando até cair na fonte da praça. A tristeza que senti fez de um pobre menino um homem, pois a consciência da morte logo cedo me foi presente.

Os anos se passaram, e aquela ingenuidade de outrora, passou por esse mesmo vento que sinto neste momento. Aqui no ponto de ônibus da praça, às 05h da matina, o vazio da rua é cabal. Olho o céu azul-escuro gradualmente ganhando claridade, e o sol subindo o seu poder por mais um dia. Os bem-te-vis começam a cantoria, me recordando quando indiretamente matei o pardal. Lembro que na época rezei a Deus pedindo perdão pelo o que fiz, como se um inocente menino por ver um pássaro pudesse ser castigado por presentear afeto. A saudade preenche o peito, o horário vai acelerando, o calor do sol começa a incomodar, antigamente não era tão quente quanto é hoje. Não apenas o calor, mas as memórias; hoje em dia passo protetor solar, mas é como se não passasse, porque o sol tem mais poder do que antes, igual às lembranças. Há dias que ele se oculta nas nuvens cinzas, e admito, eu prefiro assim. Prefiro os dias em que o vento gelado assovia, me obrigando a vestir agasalhos escuros. Seguirei para mais um enfadonho dia de trabalho, como qualquer cidadão comum, passando os poucos instantes refletindo a magnificência dos raios solares que me fazem lembrar da aurora da minha vida, esvanecida pelo tempo cruel, saltados diante dos meus olhos que não vejo passar.

Logo mais, às 17h, o horário do meu serviço se encerra, o tempo em que o tom laranja preenche o céu, anunciando assim o repouso do sol. Daqui do assento do ônibus a melancolia me acompanha quando avisto ele indo embora. Penso no meu pai, na minha mãe, nas tardes em que nunca mais existirão para mim, porque nem mesmo o clima e nem a mocidade marcada por dor permitiria um tempo de paz.

Reirazinho
Enviado por Reirazinho em 01/03/2024
Reeditado em 01/03/2024
Código do texto: T8010243
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