" E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar "

- Chico Buarque -

 

 

 

E NAQUELA CASA HUMILDE EU CHOREI

 

 

Quando estou trabalhando gosto muito de escutar canções e pessoas. A música é o combustível no carro, as conversas, o alimento na rua.
Em minha profissão escutar os problemas das pessoas é algo tão comum que já estou acostumado, mas jamais indiferente. Hoje pela manhã, nos arrebaldes da cidade, visitei uma pequena favela para intimar uma senhora para receber uma pequena indenização por morte de um filho. O casebre tinha "paredes" de compensado e teto de zinco furado. O chão batido entregava frio e tristeza. Havia um fogareiro à lenha, com algo sendo preparado, mas que não exalava o cheiro que desperta o apetite, decerto algo apenas para enganar a fome. Duas crianças nuas e com barrigas salientes me olhavam de soslaio e desconfiadas. A senhora ficou muito contente com a notícia, e quis conversar um pouco, talvez para expor alegria, ou quem sabe apenas para diminuir a solidão da pobreza. Éramos dois solitários. Ela não tinha uma cadeira para oferecer, mas tinha a gentileza das melhores poltronas. Escutei mais que falei, estava ali para ouvir e emprestar um pouco de solidariedade e empatia. Sempre trago no carro algumas coisas para doação, mas desta vez nada tinha. Peguei dois chocolares "batom" e entreguei aos meninos, que desconfiados correram para fora do barraco, na delícia de  comer algo tão simples e nunca possível. A senhora me contou muito de sua vida e de suas dores e dificuldades. Não pude ofertar ajuda financeira porque estava sem nada na carteira, mas trazia no coração o presente do acolhimento e da escuta atenta. Voltei ao carro e presentiei a senhora com um livro meu de poesias. Ela disse que não sabia ler, então eu perguntei se poderia ler uma poesia para ela. Ela aceitou, e pela segunda vez em minha vida li para alguém. E li para ela a seguinte poesia:

A saudade é uma carta d'alma
missiva, como gardênia, que perfuma e encanta,
memória secreta que abrasa e acalma,
lembrança que incendeia na falta de quem se ama.

Lembrar é amar o que não se esquece,
e amiúde sorrir e chorar o que ainda se vive,
sangue nas veias que incinera e não arrefece,
coração que não bate, mas resiste.

Ao amor é defeso o esquecimento,
sem reminiscências, morre-se sem partida,
e é mellhor a catarse das próprias exéquias sem sofrimento,
do que morrer sem amor e viver sem vida...

Ela disse que não entendeu muito, mas que tinha achado tão lindo. Deixei o livro de presente, dizendo que ela não deixasse as crianças sem frequentar a escola, pois um dia elas iriam ler aquele livro. Ela chorou, decerto, não pela emoção, mas porque essa querida gente pobre percebe quando não são invisíveis. Ela não viu, porque eu quis apenas deixar alegria, mas também chorei, e só no carro sozinho pude soluçar. Na saída ela disse que nada tinha para oferecer e apenas apertou minhas mãos e sorriu em agradecimento. Eu terminei dizendo que ela não precisava me oferecer nada, pois o melhor presente ela já tinha me dado nesta manhã de céu triste e tempo pesado. O presente, na verdade, eu que ganhei.
A vida oferece um ganho inesperado quando se deixa a beleza do amor produzir encontros e gestos que alimentam a alma e o coração. A maior elegância se encontra nas coisas simples, nos atos singelos e na doação gratuita. Ouvir é ser abrigo, ajudar é ser amor. E essa querida gente pobre precisa também da inclusão do amor e acolhimento.

 

PORQUE HÁ MARES QUE VÊM PARA O BEM
 


É de madrugada
que a nuvem da tristeza
faz da noite insônia.
Verte como orvalho na face,
onde a dor sensível
não possui disfarce.
E a plateia que dorme
não contempla a ode
desta catarse solitária.
É uma poema em lágrimas
que alguns chamam solidão...
Mas é preciso ver o mar,
como bem disse o poeta
“Navegar é preciso”.
E ainda que seja uma vereda de medo e dor,
é no mar de lágrimas
 que a luz consegue refletir o brilho das estrelas.
Toda dor ensina,
e só por ela se alcança a bem-aventurança.
Sim,
é preciso navegar o pranto
e como náufrago do amor
vencer forte tempestade.
Ela não é eterna,
ainda que seja indelével.
Quando o espetáculo chega ao fim,
e se consegue terminar o dia de ontem,
um horizonte lindo se descerra
na bonança de um encantador sorriso.
E o riso é o assomo
de quem encontra o amor,
e só assim o coração consegue perceber
que no barco da vida,
há mares que vêm para o bem...

 

 

 

Tarcisio Bruno
Enviado por Tarcisio Bruno em 29/02/2024
Reeditado em 02/04/2024
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