Habeas corpus de passarinho
Todo livro de crônica deve possuir alguma história de passarinho assim como os pintores pintam a mesma coisa de muitas formas diferentes. Pode parecer comum esse tipo de admiração porque todo pássaro desenhado em crônica possui certa simultaneidade lírica e até dramática. Neste caso apelarei para o dramático devido às circunstâncias da narrativa. Diante da folha em branco vou logo evitando o combate entre o canto e a imaginação. Sei por diabo velho o quanto é impossível limpar a consciência de saudade e culpa. Tais considerações acabam aqui com fundo inefável por guardar íntima relação entre avó e avezinha para rápida adesão dos leitores. Logo identificamos nos elementos constitutivos da narrativa a varanda, a nonagenária melíflua, a neta e o velho professor cansado. Como se pode esperar o cunhado desocupado desejando presentear uma velhinha gentil. À proporção que vamos desenhando a cena nos aproximamos do local exato.
Chamamos muitas vezes de evolução a agitação incansável de coisas arrastadas pelo movimento infernal. Há muitos anos, desejo compreender a relação entre balbúrdia e felicidade. Além de trabalhar numa escola distante, resido em frente à outra, que produz toda sorte de incansáveis gritos. Há nelas motivações para turba e quando reclamo se limitam a considerar minha velhice como razão de todo o mal. Respondo contrafeito o contrário, desde moço procuro a serenidade do silêncio para ler, refletir e escrever. Considerando incompreensível tamanha algazarra na área estudantil. Meu argumento é tão inútil como rezar num baile de carnaval.
Na quarta-feira de cinzas antes da pandemia o cunhado apareceu com a gaiola de taquarinhas amarelas contendo o cardeal enjaulado. Vovó imediatamente foi tomada de carinho por aquele ser de plumas em presença do gato como espécie de tabelião, que fosse dar fé, aquela importante aquisição de família. Estava no escritório quando Pardo entrou pelo portão dos fundos. Em seguida o pássaro destravou seu canto infeliz diante de olhos embevecidos. No escritório descobri não se tratar de visitante ocasional produzindo inesperado espetáculo. Há muito a barulheira havia afugentado toda a passarinhada das redondezas. (Pássaro gosta de silêncio para que possamos ouvir o canto). Mediante presente tão irresponsável encontrava-me refém do alpiste, da água e da limpeza. Para meu desespero nunca havia ouvido nada incansavelmente canoro.
Elaborei um plano simples.
Haveria de soltá-lo para poupá-lo do mesmo fim sofrido pelo canário torrado pelo sol graças ao esquecimento perdoável da vovó.
Fui ao veterinário mais próximo e narrei à situação. Acordo de madrugada para trabalhar e retorno ao meio-dia. Na sesta o canto insistente corta em mim qualquer indício de sono e descanso. O veterinário perplexo perguntou o que desejava de fato. Fazia parte do plano a receita de sedativo. Protestou dizendo que não era psiquiatra de passarinho, que fosse procurar um, estando certamente muito necessitado. Por razões desconhecidas cedeu aos apelos escrevendo algumas linhas com advertência para as gotas na água do bebedouro. Saí satisfeito com a atitude benevolente. Fiz o que deveria ser feito. Exagerei propositalmente a dosagem para garantir plenamente o êxito da ação premeditada. De modo que o cardeal dormiria parecendo morto para receber o “habeas corpus” da minha insuspeita decisão. Deixaria o falso finado longe do gato e quando acordasse voaria para sempre longe de casa e de carcereiros injustificados. Teria a sesta menos perturbada. Realizei o plano e fui procurar o sono dos justos. Estava muito calor e pude testemunhar a criatura canora se dessedentando apreciavelmente. Mal fechei os olhos e toda casa foi tomada por gorjeios, trinados e assobios, que se fosse de homem, atrairia todas as mulheres do mundo. Pulei da cama, descerrei à gaiola e esperei a fuga. Recusou-se. Enfiei a mão na gaiola agarrando cuidadosamente aquele corpinho de algodão que se deixou levar sem resistência. Livre voou para o galho no alto do abacateiro de onde pude ouvir seu canto como agradecimento e adeus.
*****