Passeio Matinal

“Passeio matinal”

Ele calçou as sandálias de domingo. Vai sair comigo. Tenho certeza. Sou toda excitação. Não me contenho e vou correndo em direção à porta. Ecce Homo, Wie man wird, was man ist. Desculpem-me, mas não resisti em citar meu livro preferido… Das próximas eu traduzo, sou alemã, não posso negar.

Despreocupadamente o vejo colocar aquela bermuda folgada e cheia de bolsos. O boné, os óculos de sol e o celular. Ah, e a horrorosa pochete, a qual ele não sai sem ela. Mas eu sou doida por ele. Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.

Minha vontade é descer as escadas em desabalada carreira, arrastando-o. E ele vem junto. É um belo dia de sol. Os passarinhos cantam. Há música no ar. Sem música, a vida seria um erro.

Ele canta “Me and Mrs Jones”, do Billy Paul. Gosto. Ocasionalmente desfia Mozart, mas prefiro Schopenhauer, como educador... Ainda bem que não cantarola aquele chato do Wagner, que é um problema para os músicos. Mas o gostoso é como me conduz, ali bem juntinho a ele.

Atravessamos a rua. Ele é cuidadoso. Carrega-me no colo como se eu fosse uma criança. Proporcionalmente sinto-me assim quando estou com ele. Livre, leve e solta. Dá vontade de gritar bem alto. A maioria das vezes ele me recrimina. Preocupa-se com os vizinhos, sei lá. Ao ar livre é diferente. Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que realmente sabem.

De repente ele pára diante de uma pata-de-vaca e olha as flores. Talvez compare com a quaresmeira que acabamos de passar. São ambas bonitas e diversas. Ao neófito, pareceriam iguais. Lá longe um gorgeio de sabiá. O homem que vê mal, vê sempre menos do que aquilo que há para ver; o homem que ouve mal ouve sempre algo mais do que aquilo que há para ouvir. Meu homem -no entanto- é um poeta, ele vê e ouve além dos meros humanos.

Uma ou outra mulher passa ao largo. Olham para ele. Reconheço que é bonito. Mas elas não são páreo para mim. Esfrego-me em suas pernas. Delícia. Poderia amá-lo aqui e agora. Sem pudor. Somente uma se aproxima e a respeito. Seu cheiro é bom. A moralidade é o instinto do rebanho no indivíduo. Eu estou acima disso tudo.

Estamos voltando para casa. Espalho a minha marca pelo caminho. Importante fixar meu território. Sei que o assédio existe. Não vou negar e nem ser hipócrita. As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras.

Ele, se fosse um cachorro, seria um Dobberman. Magro, musculoso, inteligente. Algo agressivo. Mas fiel. Isso que eu desejo. Talvez um pastor. Mas na acepção canina da palavra. Cuidando de mim. Guiando-me. A essência da felicidade é não ter medo. Eu encaro meu animal.

Chegamos. Ele vai buscar água pra mim e me servir boa comida. Estou plena. Depois vai me trancar no quartinho de empregada e sair com seus filhos e a esposa. Eu entendo, eu permito. Quando voltar, estarei alegremente saudando seu retorno. Afinal, eu sou uma Schnauzer. Um cão. Ele? É humano, demasiadamente humano.

- Tchau, Úrsula. Eu te amo.

- Uuuuuuuuuuuuuuuurrr!

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 03/01/2008
Código do texto: T800961
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