Saudade e a terra dos esquecidos

Uma árvore cresceu no jardim. Ali, todos a conheciam por sua gentileza e amor sincero, soltos vez ou outra em folhas sorridentes que, ao cair sobre terras vizinhas, dissipavam alegria. Ela possuía um nome, Di-Taida, não atoa, é verdade. A árvore que fala. Como nascera? Eis um mistério. Em um dia qualquer de Outono suas raízes foram apenas crescendo, atravessando o chão úmido e fazendo do seu corpo nodoso um com o Sábio Haw. Passaram-se não mais que alguns dias, os galhos protuberantes organizaram-se em uma copa sombrosa, sob a qual algumas crianças vinham e deitavam-se para respirar o fôlego da vida. Entre sussurros levados, olhando o Sol brincar nas folhas farfalhantes, as pessoas lembravam-se de quem eram, esse era o poder da sábia árvore que murmurava perguntas em cada folha caída. "Os sentimentos são como gostos na boca" disse para o Vento que passeava em rodopios. "Mesmo que não esteja vivendo o momento de sua origem, ainda é possível sentir uma tênue lembrança que sempre permanece nas pessoas, só preciso das palavras certas". As súbitas submersões demonstradas em sorrisos tímidos de visitantes ao tocarem o passado ou a amargura das injustiças que corroem e queimam a carne mesmo tanto tempo depois, tudo isso somente humanos podiam mostrar-lhe. O Vento lhe percorreu uma das galhas e ali sentou-se tranquilamente. "Tuas loucuras sábias me assustam, Di-Taida", disse serene em palavras que ela, como sua amiga, não poderia acreditar. O próprio Felia vivia entre mundos, conhecendo e admirando-se com os humanos assim como a árvore.

"Tenho trazido boas novas", disse uma Gwaja em forma de pomba assentando-se ao chão. "O que seria, Saudade? Suas histórias sempre me emocionam", disse feliz, apesar de saber que poucas vezes trazia-lhe boas notícias. "Divino se foi. Todos juntaram-se para recebê-lo no Monte das Lembranças. Ele não estava aflito, nunca vi algo assim, boa amiga. Apenas sorriu ao plantar ali um pouco de si, deixando para trás tudo que fora outrora". A árvore suspirou com a leve brisa para finalmente falar "Os humanos não são fascinantes e tolos? Será que é preciso morrer para enfim ver-se como a alma preciosa que é? Temo por eles, que se esqueçam de momentos como esse abaixo de uma velha árvore. Dias assim, em que podem olhar para o céu e perceber o quão pequenos, mas especiais são". A pomba coçou-se e encarou-lhe com curiosidade obstinada "não eras tu humana, Di-Taida?". Ela estava certa. A árvore já fora humana, apesar de nunca lembrar com precisão. Às vezes não sabia dizer. Um dia apenas decidiu que poderia ajudar muito mais almas se estivesse presa ao chão, ou será que fora seu estranho interesse em observá-los que lhe fez ali parar? Sempre se esquecia...

        "Nunca serei capaz de chorar por eles", disse de súbito Saudade com uma simplicidade de assustar qualquer homem racional. "E por que não?", ela sorriu "Não vão todos para a Terra dos Esquecidos? Que tenho eu para sentir por quem está fadado a não existir? Acham-se pois demasiado, com seus desejos tolos de serem melhores uns que os outros, sua insistência em serem lembrados...Não é porque sou a Saudade que haveria de tê-los com carinho, estou aqui apenas para afirmar uma ilusão. Todos se vão, os que ficam guardam-me com eles até que chegue sua vez!" engasgou-se ao final. Di-Taida odiava a forma como Saudade reduzia tudo ao mero futuro inevitável. "Que seja... Vá, vá, vá-se embora sua bicuda" tangeu-a. Ela sorriu de forma sagaz ao atar voo e deixou-lhe, ali, sozinha mais uma vez. Já chegava a noite e todos voltavam para seus lares. Restara, ao final, a Solidão, isto até um novo dia, onde almas desconhecidas e, quem sabe, reencontros, poderiam mais uma vez ser reais. "Reais..."

De fato dizem que palavras são o ouro do pobre e bastou-lhe uma única. Não haveria maior angústia que lembrar-se em Noites ríspidas como aquela das linhas delicadas que teciam fabulações. "Ah, posso compreender" murmurou ao Vento que tocou-lhe gentilmente como consolo. "São estas lembranças vagantes...". Como desejou chorar, o faria se tivesse lágrimas, mas não as possuía. Seus troncos rangeram, acordando as irmãs silvestres que pareciam incapazes de constatar aquele mundo como de fato era.

"Este mundo é uma farsa, precioso Felia", disse ao que olhou as estrelas, os infinitos pontinhos no céu, "eu posso ver que não somente ele". Lembrou-se então o que era, restos de um tronco mofado vivendo em um jardim de mentiras. A Noite nunca esforçara-se em ocultar aquilo, não precisara, pois confiou que o escuro seria capaz de lhes cegar, assim como suas próprias mentiras agradáveis repetidas tantas vezes em folhas que passeavam por todo o jardim. Mas naquela noite não, nela fora capaz de ver que habitava a lamentável Terra dos Esquecidos e que ela, este resto de vida, assim como os humanos, havia sido esquecida. Talvez fosse omitida desta verdade indubitável ao raiar de um Sol límpido, mas por aquela breve Noite a árvore se conheceu em verdade.

Lyadri Pondraci
Enviado por Lyadri Pondraci em 28/02/2024
Código do texto: T8009357
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