A era do carro elétrico
É cedo para dizer que o Brasil já está na era do carro elétrico? Acredito que sim. Mencionei “a era” mais como uma homenagem. Há quase 123 anos, João do Rio decretou: “E, subitamente, é a era do Automóvel”. Ele descreveu a máquina automotiva como um “monstro” que bufa. Pois são os “peidos” dos automóveis que ajudam a degradar o ambiente. O uso do carro elétrico seria mais sustentável. O carro elétrico não peida. É um avanço.
Mas com o carro elétrico emergem adaptações necessárias. João do Rio disse também que o automóvel “tudo transformou com aparências novas e novas aspirações”. O mesmo pode ser dito, mais de cem anos depois, do carro elétrico. Leio no jornal Valor Econômico que o “Carro elétrico agita reunião no condomínio”. É a manchete ipsis litteris. O carro não peida, mas exige carregamento pela tomada. Imagine um sujeito morando em um determinado condomínio. Ele compra um carro elétrico, percebe que a bateria está acabando, pega a tomada do veículo e observa que não há entrada adequada para carregar o carro. Ele vai furioso atrás do síndico.
- O condomínio de vocês não tem entrada para eu carregar meu carro.
- Sinto muito, isso aqui foi construído antes do carro elétrico começar a existir.
- Olha eu pago essa p… Então trate de dar um jeito.
- Senhor, se acalme para que possamos pensar numa solução…
- Eu quero carregar agora!
O morador furioso precisaria de uma tomada de 220 volts aterrada. Ele tem um carregador portátil que veio junto com o carro. Porém, serão necessárias umas 12 horas para carregar a bateria. Se quiser sair com o carro no outro dia, ele precisa da tomada e do tempo.
- Eu vou trabalhar amanhã cedo!
- O que posso fazer?!
O síndico precisaria adaptar a garagem do prédio, mas isso não é algo que se faça da noite para o dia. Ele precisaria de consultoria antes. Portanto, ele não poderia mesmo fazer nada naquele momento.
O morador o pega pelo colarinho. Mas o raro leitor fique tranquilo. O diálogo e a ação do morador são frutos da minha imaginação. Entretanto, descrevem algo que pode se tornar mais comum na medida que carros elétricos vão sendo adquiridos e se tornando mais frequentes no Brasil. Segundo a reportagem do Valor, houve discussão que foi parar na polícia.
João do Rio disse que o automóvel de sua época foi “o grande transformador de formas lentas”. Atualmente, as novas necessidades que vão surgindo graças ao carro elétrico implicam no surgimento de novos serviços. O jornal mencionou a existência de uma empresa que se especializou em diagnósticos para a adaptação de edifícios ao carregamento de carros elétricos. É possível que eventualmente apareçam empresas de arbitragem especializadas em buscar consensos entre moradores a respeito da configuração elétrica do condomínio. Não vamos querer que o síndico apanhe ou que os moradores quebrem o pau entre si. Também não é bom ficar incomodando a polícia com discussões sobre tomada.
É verdade que alguns moradores tentarão encontrar suas próprias soluções. Há aqueles que vão treinar artes marciais. Prevejo que junto com o crescimento do uso de carros elétricos haverá o aumento de números de alunos nas aulas de defesa pessoal. No formulário de inscrição, se houver, para as aulas de luta terá a seguinte opção na pergunta sobre os motivos para a matrícula: "você e/ou seu vizinho possuem carro elétrico".
João do Rio percebeu outra coisa na sua época: o automóvel impacta até a linguagem. "A reforma começa, antes de andar, na linguagem e na ortografia". Ele fala sobre diálogos "bizarros" em que as pessoas citavam siglas e palavras em inglês. Com o carro elétrico, as conversas de hoje fatalmente terão suas siglas.
- Qual o seu carro?
- Volkswagen ID. 2ALL.
- É muito bonito! Só que eu quero um BYD Dolphin.
Mas voltemos à questão da engenharia civil. Não são apenas os edifícios com apartamentos que precisarão se adaptar aos carros elétricos. Shopping centers, como diz a reportagem do Valor, já estão cogitando instalar eletropontos com o intuito de atender clientes que possuem carros elétricos. É possível que ao longo dos anos o carro elétrico se torne universal nas pistas do Brasil - ou seja, que ele acabe se tornando “o ideal de toda a gente”, nas palavras de João do Rio. Isso quer dizer que toda a cidade vai precisar se adequar. Principalmente a vizinhança em condomínios.