Cinquenta e nove
Um conto, um canto, um corte.
Como se fosse um encanto, sempre que o carnaval acaba, eu me vejo novamente criança.
Se alguém um dia perguntar por mim, diga que eu nasci assim que o carnaval acabou, num dia de muita chuva, daquelas que despenca e logo passa, formando o intenso mormaço, como se o sol resolvesse fazer o inferno sentir inveja da terra.
Nasci todo torto e nenhum anjo veio me visitar, nenhuma asa, nenhuma trombeta, nada. O medo sim, esse nasceu comigo e atingiu tudo em volta.
E onde sucedeu tal ventura? A quatro quadras acima do portão de ferro, bem perto da cabeça de boi, no bairro Amambai, num tempo muito difícil, no qual por um breve (mas marcante) período nossa morada foi a varanda da casa de uma gentil senhora de bom coração, surpresa e impactada ao ver minha mãe comigo no colo e ainda levando seis irmãos, sem destino, desemparados, atirados à vida.
Dói lembrar, as lágrimas secaram, mas a dor ficou.
A chuva daquele dia lavou a calçada, encheu os rios, embalou a canoa, mas nunca apagou a minha poeira.
Sou campo-grandense da gema, raiz comprida arrancada do chão, no puxão forte de dedos, panela de carne com mandioca, terra vermelha, céu de araras. As águas da chuva do Guanandi já banharam o meu corpo manchado de nascença, figura vermelha, tal qual o barro do chão que eu pisava, pés descalços, calça curta, duas camisas, um conga azul, nada mais.
O barulho do sopro do vento nunca é o mesmo de quando criança, a direção muda, surgem outras estradas e o dedos marcam a farda parda, ensopada de sempre, para nunca esquecer: eu sou do mato, do pé de guavira, do quintal repleto de folhas do pé de manga, queimadas nos fins de tarde pelas mãos ligeiras da minha avô Aurora...Ah, a minha avô, cabelinhos brancos e enroladinhos... será que um dia eu vou revê-la?
A longa estrada ainda surge vez em quando na minha vista, rua de pó, que vai dar na porta às avessas, sem trinca, sem chave, feito um sonho recorrente, por mais que eu caminhe, acabo batendo nessa mesma porta, sempre aberta e fazendo um chamado: venha, entre, e eu desobedeço, saio correndo até subir numa árvore torta das cascas lascadas e lá de cima revejo tudo novamente.
A avenida Contorno, hoje chamada Salgado Filho, possui o meu cheiro, as minhas pegadas, é ali o meu sertão, onde ainda escuto o trotar sem pressa de um cavalo puxando carroça e me vejo sentado na beira, eia Baiano, vamos, vamos!... Cheiro de capim molhado, da bosta do cavalo, cheiro de infância. Aos poucos as colinas surgiam, abertas pelas pequenas ravinas e o mato ia se abrindo, mostrando o pulsar da vida, os bichos e seus mistérios. De repente um campo florido, o amarelo e o vermelho de mãos dadas, o azul que se confundia com as borboletas voando em contraste com os besouros e as abelhas do mel sem colmeia, indo findar nas lagoas perto do córrego que atravessava a cidade, sobradados de libélulas e tantos segredos.
Tudo passou tão depressa...Acorda menino manchado, sua mãe te espera...
A minha mãe, a moça magra e assustada do retrato de ontem, carregando no colo o menino grande e desengonçado, ela que tem vida até no nome e ainda hoje reza orações pedindo para Deus me abençoar e proteger, a minha mãe, a fortaleza, a minha Vida.
Fecho os olhos e revejo imagens de antes, os pedregulhos da Bandeirantes, o cascalho dos paralelepípedos da Calógeras, suas lojas e bares que hoje parecem cenário de filme de assombração. Dói feito um vaso raro quebrado pelo vento.
Em frente à estação ferroviária sobrevoa o vento de antes, vigilantes a tudo, o silvo que lamenta não mais enxergar a água doce correndo abaixo da rua Maracaju, aquelas mesmas dos tempos das enchentes sem fim, quando as canoas atravessavam as ruas.
Vai canoa, leva a minha alma, lava o meu penar...
O apito do trem ainda assobia dentro de mim e vejo o casarão amarelo que um dia foi pensão, largado no centro da cidade e um tanto vazio, tal e qual o grande hotel no centro da cidade, hotel fantasma onde moram antigos sonhos calados.
Ainda me atinge o assovio...Tudo passou tão depressa...cinquenta e nove...
No pátio do colégio Oswaldo Cruz dona Maria tocava um sino anunciando o fim do recreio e a gente corria para a sala de aula, cessando a algazarra diante da figura impoluta da professora Zilda, mestra querida que um dia me chamou de poeta e fiquei com o rosto vermelho, amassando entre os dedos o papel que escrevi, ela leu e gostou, algo assim:
Um canto, um conto, um conte.
Só para o vento eu fiz esse verso
Só para o vento, o meu alento.
Sopra o vento, tão denso, tão forte.
Um sopro, o corte...
Cinquenta e nove...Uma esposa, dois filhos, um neto, alguns poucos e bons amigos...Só tenho a agradecer.
O tempo é o vento batendo na porta.
Se perguntarem por mim, imagine que estou bem em frente à estação de trem, logo depois que o carnaval passou, quando a noite cai e tudo é silêncio. Naquelas ruas existem umas pedras cortadas, elas contam a história para os cachorros vadios e os bichos uivam para a lua tentando não apagar a história da minha cidade.
A lua escuta, mas não sabe falar, então eu conto.
Se um dia perguntarem de mim, num final de carnaval que eu não estiver mais aqui, diga que me conheceu e eu fui seu amigo. Diga também que eu lhe contei sobre os trilhos, sobre um enorme trem azul que por ali passava e era tão grande quanto a saudade que sinto e me abrasa. Era apenas um trem, mas hoje é do tamanho da mais brilhante estrela que existe no céu, esse mesmo céu que ilumina o armazém, uma feira repleta de gente, atrás da torre com o símbolo das letras: ninguém ou nenhuma, orbe ou onda, brilho ou bastão. Ali joguem as minhas cinzas, me permitam repousar entre seus vãos, onde caminha a minha estrada e voam os meus bichos, o pó de onde vim, onde a chuva não haverá de varrer o que fui, ali bem no meio, no seio daquelas pedras cortadas...