LASQUEIRA DE MOSCA, SÔ!

A mosca, voando como um foguete, enlouquecida pelo odor de comida exalando da cozinha, passou raspando o meu rosto e se alojou no abajur aceso. A princípio, se bem enojado pela inesperada e nada bem vinda presença da intrusa, procurei dissimular e fazer de conta que ela logo iria embora, pois afinal de contas raramente as asquerosas ousam chegar até ao décimo andar do edifício onde moro. Então, matreiro, de olho fixo nela, esperei que se fosse Mas a danada não foi. Num repentino vôo rasante, parecendo um planador desembestado e sem controle, saiu como que quicando pela parede, alcançou uma panela quietamente depositada sobre a pia por alguém desavisado e ficou

batendo as frágeis asinhas, toda contente, toda feliz. Num salto que eu nem pensava ser capaz de protagonizar, tomando de uma revista avistada sobre a mesa posta para o jantar, sapequei-lhe um safanão desesperado mas ela, matreira, escapou com a rapidez de um raio e eu, pobre de mim, só consegui jogar a panela com estrépito no chão de cerâmica provocando um zuadeiro ensudercedor. E a danada da mosca lá, agora já empoleirada no vidro da janela e certamente, se tivesse cérebro para tanto, deveria estar zombando de minha pontaria e questionando minha sanidade mental. Suei ruborizado, o coração aos pulos e a emoção sacudida pela raiva. Enquanto eu apanhava a panela amassada e imaginava o que diria minha mulher quando visse o estrago, novamente a nojenta, voando faceira em desabalada facilidade, tornava a passou bem rente ao meu rosto como a tentar mostrar que eu não era páreo para ela - penso que escutei um simulacro de riso no mesmo instante. Será que era? Aí sim, eu me enfureci de verdade e passei a esbofetear o ar em todas as direções na frustrada tentativa de acertá-la, mas ela apenas ia e vinha como se flutuasse e eu nem chegava perto dela. As tentativas foram um verdadeiro malogro. Por vezes a bicha safada pairava como a fitar-me, depois ia para um lado, a seguir para o outro, nem to you, e eu a buscá-la sem sucesso, esbravejando todas as palavras grosseiras do meu dicionário.Tudo em vão. De maneira que, já cansado de tanto alvoroço e movimento desenfreado, abri as janelas da cozinha e da sala na esperança de vê-la desaparecer na escuridão da noite e aguardei. Mas, que nada! A mosca, embalada pelo meu fracasso no intuito de pegá-la de jeito, dançava em pleno ar em frente ao meu rosto chocado, alcançava o teto da sala, saltitava por entre panelas, pratos e talheres, pousava, balançava as asas à guisa de gestos desafiadores e dava a entender que eu não a pegaria de jeito nenhum, que ali ela era realmente a rainha da cocada preta, branca e de todas as cores e que estava, sim, no controle da situação. Bom, eu bem que tentei, não havia mais nada a fazer, apenas reconhecer a batalha perdida para uma reles mosca e deixá-la em paz para fazer o que quisesse. Sentei-me procurando acalmar meus nervos e fiquei cabisbaixo, as mãos na cabeça. Não sei quanto tempo permaneci assim, pensativo, em frangalhos, mas quando levantei a vista não vi em lugar nenhum Achata da mosca, dando-me por feliz por ela ter ido embora da mesma maneira como veio.

Ledo engano, porém. Saindo do nada, lá veio a danada novamente a rodopiar em torno de mim para, finalmente, pousar suavemente em minha testa, onde caminhou de um extremo ao outro como se fosse a dona do pedaço. Levantei-me aturdido, ela de carona na minha testa, fui até o banheiro, tirei a roupa, bocejei inquieto - a mosca continuava no mesmo lugar -, liguei o chiveiro(foi só então que ela saiu de mim e se alojou nas proximidades, ficando a esperar-me, certamente) e tomei uma ducha quente. Durante todo o tempo do banho ela permaneceu onde estava, e finalmente, quando terminei de me enxugar, ela voltou para a minha testa e só saiu de lá quando quis, apesar dos tapas e bofetões que me apliquei, em vão. Lasqueira de mosca esquisita, sô! Que amor doido é esse?

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 03/01/2008
Reeditado em 10/08/2021
Código do texto: T800844
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