O Isentão

Estava na entrada do cinema, com minha então namorada, quando notei que dois rapazes estavam discutindo política e havia um terceiro com eles que não dizia nada. Em determinado momento, o rapaz quieto foi questionado pelos outros dois. Não ouvi bem qual foi a pergunta. Mas a resposta não agradou nenhum dos dois. Ou seja, os dois adversários na discussão concordavam numa coisa.

- Isentão! - disse um deles ao terceiro rapaz.

Numa democracia polarizada, militantes que são adversários entre si podem acabar se unindo para fustigar o “isentão”, aquele eleitor que não se identifica com as duas maiores forças políticas de um determinado país.

O adjetivo “isentão” é irônico. E é isso que o torna o maior paradoxo do nosso tempo. Explico: além de não ser isento, o “isentão” consegue a proeza de estar nos dois lados da polarização ao mesmo tempo. Já que o “isentão” não seria neutro, apenas fingiria ser, ele só pode estar do lado do inimigo.

Isso é comum na internet. Por exemplo, o “isentão” nas redes sociais consegue ser acusado de comunismo e de ser agente do imperialismo americano simultaneamente. Assim como o jornalismo profissional se torna um dos alvos preferenciais dos caçadores de “isentões”. O jornalista precisa manter equidistância dos agentes políticos. É um princípio ético básico. Porém, isso é mais do que o suficiente para que seja atacado pelos sectários. Os jornais da “grande imprensa” se disfarçariam de “isentões” para ocultar suas preferências políticas: a Folha de S. Paulo seria a “Foice de S. Paulo” ou um jornal a serviço do neoliberalismo; o Estadão é “Esquerdão” ou “porta-voz do golpismo de direita”, entre outros exemplos. As publicações verdadeiramente “imparciais” e “isentas” seriam os panfletos que confirmam as convicções das claques.

Outro dia, propus a um amigo que criássemos o “Calendário do Isentão”. Ele achou que fosse piada.

- Essa foi boa. - ele disse.

- Não, eu estou falando sério. - respondi.

- Sério? Calendário do Isentão?

- Sim. Quando eu não falei sério?

- Várias vezes. Às vezes, não sei se você brinca ou fala sério.

- Desta vez é sério.

Sugeri que deixássemos claro nas redes sociais quais os dias em que determinado rótulo é adequado. Por exemplo: “me chame de comunista só nas segundas-feiras; nas terças, eu sou capacho do imperialismo americano etc.”

- Viu? Você nunca fala sério. - disse meu amigo.

Brincadeiras à parte, há algo de tenebroso em tudo isso. Acredito que as tiranias odeiam mais os “isentões” do que os seus inimigos declarados. Na escala do ódio ditatorial, o isentão só não é mais detestado que os apóstatas. Há mentes que não acreditam na existência de pessoas independentes. Para elas, a seguinte frase é quase uma lei da natureza: “quem está em cima do muro sempre cai do outro lado”. Ou seja, o “isentão” é sempre do mal. Mas seria um mal ainda pior, pois seria um inimigo, um ser traiçoeiro sob um disfarce.

Agora me deixe terminar o relato do cinema. Percebi que o terceiro rapaz, que seria um “isentão”, foi praticamente deixado no vácuo pelos outros dois que ainda discutiam obstinadamente. Depois, parei de prestar atenção, pois estava decidindo com minha namorada qual dos dois filmes que sobraram (descartamos os demais que estavam em cartaz) iríamos assistir.

- Nenhum dos dois. Vamos para a praça de alimentação.

- Isentão. - ela disse, em tom de brincadeira.

Quer dizer, eu espero que tenha sido mesmo de brincadeira!

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 26/02/2024
Reeditado em 26/02/2024
Código do texto: T8007661
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