Série: “Sob o olhar de um professor” – Cap.#08 – Crônica: “O Sucesso Incomoda” – Renato Cardoso
Todo professor, que já trabalhou nos três turnos, sabe que o noturno é um turno especial, pois nele encontramos uma diversidade imensa de alunos e situações.
Jovens e adultos se misturam, todos com diferentes anseios. Os problemas são os mais diversos. Quem acha que trabalhar com adultos é simples, está completamente enganado.
Em 2015, fui chamado para fazer a coordenação da EJA de uma escola particular. Topei imediatamente pelo desafio proposto (sempre movi minha vida por desafios).
O turno estava meio complicado. Os alunos estavam necessitando de regras e os professores de motivação. Nada muito simples de resolver, mas possível de solução.
Não me deixei entregar. Fui aos poucos conhecendo um a um (tanto os alunos quanto os professores). Reza a lenda que muitos não acreditavam que eu seria capaz de conduzir um turno tão complicado, pois tinha um estilo mais voltado para o diálogo.
Os primeiros seis meses foram intensos. Limites foram impostos, mudanças realizadas, solicitações atendidas. Tudo começou a andar como deveria (confesso que não imaginava que seria tão trabalhoso, mas de um crescimento profissional enorme).
No final do primeiro ano, já havia contornado praticamente todos os problemas. Assistir aula não era mais problema. O pátio era somente para o recreio. Estudar começou a fazer parte da rotina de vários. Enfim, o crescimento pessoal começou aparecer.
Nunca fui um coordenador que ficavam dentro de uma sala, eu mais parecia um inspetor, pois ficava boa parte do tempo no pátio observando tudo. Não demorou muito para que os alunos entendessem que poderiam me procurar sempre que necessitassem.
A mudança de postura e a cobrança exercem um poder mútuo. Os alunos estavam ficando mais críticos e isso era legal, pois estavam entendendo que era importante o comprometimento para ter o sucesso no final do semestre.
No início do ano seguinte, uma aluna, em torno dos seus 30 anos, me procurou perguntando se poderia vender seus produtos (cosméticos e lingeries) na escola durante o recreio. Ela prometeu ser bem discreta e não atrapalhar o andamento local.
Não vi motivos para proibir. Ela estava batalhando pelo seu ganha pão. Fiquei a observando ao longo do semestre. Tudo foi feito direitinho, sem nenhum problema. Ela respeitou o espaço.
Depois de uns três, observei que a estudante havia parado de vender seus produtos. Então, a questionei o motivo. Ela, solícita, me respondeu que havia conseguido um emprego de carteira assinada. Estava muito feliz por isso. Dei meus parabéns a ela, desejando-a sucesso.
O tempo foi passando e nada de anormal acontecia. As provas estavam chegando, junto ao final do semestre. Meu inspetor, um cara fenomenal, me chamou e relatou que a aluna acima citada estava no canto da cantina chorando.
Pedi a ele que a chamasse e a direcionasse para minha sala. Entrei e fiquei a esperando. Uns minutos depois, ela bate a porta, solicitando a entrada. Permissão dada. Ela se senta e começamos a conversar.
Chorosa, ela me comunicou que iria parar de estudar (detalhe: ela estava no penúltimo semestre, ou seja, segundo ano do Ensino Médio). Ela era tão aplicada, responsável e estudiosa. Pensei que fosse por motivos financeiros.
Peguei um copo com água para que se acalmasse e, assim, pudéssemos conversar. Ela começou a falar da vida e que estava animada com o emprego, que havia crescido na instituição. Não entendia o porquê da desistência.
Percebi que havia algo a mais. Perguntei como estavam as coisas em casa. Ela relatou que o cônjuge estava com ciúmes dela, por estar estudando. Tratava-a mal por isso.
Cheguei ao x da questão. Na verdade, quando ela não estudava, ela se virava com as vendas e dependia diretamente dele para tudo. Conforme foi avançando nos estudos, conseguiu um emprego e, por ser dedicada, cresceu na empresa.
Ela começou a ganhar mais que o marido, que por um pensamento ou criação machista, tentou fazer com que ela parasse de estudar. A situação era delicada, pois não sabia até onde poderia me meter (mas não teria como deixa-la desistir).
Mostrei a ela as consequências que desistência dela traria. Ela deveria fazer escolhas e naquele momento, a melhor escolha seria ela. Continuar a estudar e adquirir sua conquista e ir em busca de cargos maiores.
Ela sorriu e agradeceu a conversa e, mais calma, se retirou. Fiquei preocupado, não sabia qual decisão tomaria (como disse anteriormente, o assunto era extremamente delicado). O turno acabou e fomos todos embora.
Na noite seguinte, pontualmente às 19h, as aulas iniciaram. Num primeiro momento, não a identifiquei no pátio (ela sempre chegava cedo). Logo pensei que ela havia cedido aos desejos do marido.
Para minha felicidade, quinze minutos depois, ela aponta no pátio da escola. Sorridente, chegou próxima a mim e me disse que iria até o final (desistir não era opção). Pediu desculpas pela atraso, que foi devido ao trabalho.
Fiquei feliz com a decisão. Ela subiu, foi assistir suas aulas. Às vezes, conduzir a vida de alguém é complicado, mas quando a responsabilidade é chamada não temos escolhas. Mais uma noite começou e haviam outros alunos para orientar. O trabalho chamava…
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