Série: “Sob o olhar de um professor” – Cap.#07 – Crônica: “A voz adormecida” – Renato Cardoso
O Diário da Poesia teve uma contribuição muito grande para minha vida pessoal assim como na profissional. Muitas pessoas passaram pelo projeto (e inevitavelmente por mim). Foram muitas histórias, muitos anseios e muitas realizações.
Jovens e adultos que não tinham espaços para exporem seus textos ou, simplesmente, quem os ouvissem, tiveram microfones abertos, páginas escritas e atenção dada. Adolescentes que se apaixonaram pela poesia e adultos que puderam mostrar suas paixões formaram uma década de projeto.
Como vocês já sabem, o projeto com os jovens acontecia, na maioria das vezes, aos sábados pela manhã e dessa vez não foi muito diferente (uma vez me perguntam o motivo pelo qual fazia isso, já que não ganhavam nada financeiramente. A história vai responder esse questionamento).
A escola em questão ficava em Alcântara, bairro movimentado no município de São Gonçalo, local onde tudo se tem e onde todas as pessoas passam com pressa. Muitos carros, ônibus, pedestres e construções ilustram o espaço mais populoso da região.
Às 8 da manhã, a escola nos pegou em frente ao Clube Mauá (ponto de referência de todos os encontros) e partimos em direção a escola. No caminho, o planejamento foi feito entre conversas e risadas. Era uma manhã especial, pois boa parte dos artistas que iriam participar do sarau itinerante, eram jovens de 16, 17 anos.
Chegamos à escola. O local estava simplesmente lotado. Cerca de 100 alunos, de diferentes idades, sentados em semicírculo, nos aguardavam. Eles deixaram um espaço para que nós passássemos e assim foi feito…
Não demoramos a começar e pontualmente às 9h estávamos no cento do círculo formado. Quando passamos, eu ouvi baixinho de uma menina, que estava sentada ao fundo: “Evento de poesia deve ser chato demais” (não foi com essa delicadeza toda, mas não quero colocar palavras chulas na crônica).
Fingi que não ouvi e seguimos. Apresentei-me, falei um pouco sobre a importância da escrita e da leitura e fui chamando os poetas um a um. Enquanto eles falavam, eu sempre pedia folhas e lápis a escola, mas desta vez não fiz isso.
A primeira rodada havia terminado e, como de costume, abri espaço para que os alunos pudessem participar conosco. Perguntei se havia alguém que gostava de escrever e queria ir a frente declamar seu texto. Lembra da menina do comentário? Então…
Amigos próximos apontaram para ela, me pedindo para chamá-la. A mesma torceu a cara, reprovando a ideia, mas insisti o suficiente para conseguir o feito. Ela topou, mas colocou uma condição, que eu estivesse ao lado dela. De pronto, aceitei a solicitação.
A aluna, que chamaremos de K, se levantou e ficou ao meu lado, pegou seu celular e trêmula começou a ler sua poesia. O silêncio tomava conta do ambiente. Olhos atentos para K. Foram segundos, talvez, um pouco mais de um minuto para que ela terminasse.
O poema de K chegou ao ponto final e o texto continuou com lindas palmas e gritos de alegria de todos os presentes. A poesia nos proporciona o encantamento imediato, nos leva para uma dimensão sem dor, sem problemas, onde encontramos somente o belo, a paz e a inspiração.
K foi a inspiração para muitos naquela manhã. Depois dela, outros jovens tomaram coragem e participaram do projeto. A estudante reticenciosa do início deu lugar a uma pessoa com um sorriso diferente. Ela me pediu para participar mais uma vez, e assim aconteceu.
Os jovens do Diário da Poesia falaram sobre suas experiências. A segunda rodada estava no fim. Peguei a lista de presença e sorteamos alguns livros. O jornal do Diário foi distribuído para todos.
Evento findado e foto coletiva feita. No canto da quadra, onde eles estavam sentados desde o início, tinha um palco de concreto. Sentei ali enquanto eles conversavam e tiravam fotos com os adolescentes que foram conosco.
Para minha surpresa, K sentou-se ao meu lado e começou a conversar comigo, dizendo que ela gostava de escrever e queria mandar alguns textos para o jornal e portal do Diário da Poesia. Apontei para o número de WhatsApp que tinha no periódico impresso e disse que era meu.
Combinamos que receberia os textos e continuaríamos conversando a respeito da escrita. O horário acabou. Entramos no carro e regressamos ao Centro de São Gonçalo. Mais um evento realizado com sucesso, mais uma história para a memória.
A história da aluna K não parou no sábado. Na segunda pós projeto, recebi, via aplicativo, o primeiro texto da estudante. Um poema juvenil, mas com forte apelo confessional. Fiz as devidas correções gramaticais e publiquei no portal. Enviei o link para ela, a mesma agradeceu. O link também foi enviado para a coordenação do colégio, que prometeu divulgar.
Dois dias após a publicação, perguntei a coordenadora qual foi a repercussão. Para minha felicidade, além do sucesso do link, outro feedback veio.
A educadora relatou que K havia chegado à escola naquele ano e que vivia pelos cantos, sempre triste. Pouco falava e pouco se socializava, mas quando viu o link do seu texto divulgado no quadro de aviso dos alunos, abriu um sorriso nunca visto antes.
A profissional ainda relatou que outros alunos foram conversar com ela. Os professores a parabenizaram. Afinal, ela se sentiu importante e isso mudou a perspectiva de K. Aquela menina insatisfeita deu lugar a uma feliz e radiante.
O projeto cumpriu sua missão. Eu ainda recebi mais alguns poemas dela ao longo do ano. Todos foram publicados. K aumentou sua produção, mas por problemas técnicos no celular, perdi o contato dela. Espero que ela esteja produzindo ainda, colocando no papel todas as suas aflições e felicidades. A poesia derruba barreiras e sempre vence no final.
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Série publicada aos domingos na Revista Entre Poetas & Poesias. Instagram: @professorrenatocardoso / @literaweb / @devaneiosdumpoeta / @revistaentrepoetas
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