A resignação do leiteiro
O dia começa com um "Bom dia" ao leiteiro. Uma sentença mecânica e estúpida, porém ainda necessária, por enquanto e durante Jesus não voltar. Um "Bom dia" ao leiteiro, ao leiteiro que não está tendo um "bom" dia, pois o assaltaram, soa como ironia, mas que é apenas um dos rituais da vida, no âmbito de nossas relações institucionais.
Não sei dizer, porém, se, caso não o tivessem assaltado, o dia lhe seria agradável. Vida de leiteiro, uma dureza: começar a trabalhar na madrugada, acordar logo cedo as vaquinhas, pedir-lhes licença, alegando a urgência da vida; depois, sair em sua motinha, ainda na penumbra, pelas ruas da cidade, entregando o nosso leite de cada dia, submetendo-se ao risco de ter as canelas mordidas por cachorros, de sofrer acidente automobilístico mortal, de ser assaltado.
O leiteiro e eu: ele, assaltado, eu sem saber o que dizer, tendo que recorrer a perguntas de costume. Porque literal e pessoalmente nunca fui assaltado, ainda. Às vezes me sinto injustiçado: quase todo mundo que conheço já foi literalmente assaltado, menos eu. De uns, levaram carteira, celular, dinheiro, aliança, um par de tênis All-star, até; de outros, subtraíram o mais importante: a coragem, a confiança, a esperança na vida. O leiteiro parece incluído nesse segundo grupo.
Pergunto se já informou à polícia, se houve violência física, apontamento de arma... Em silêncio, o leiteiro apenas enche a vasilha. Parece resignado.
Pergunto se foi a primeira vez. Diz que não.
Esta foi a terceira vez em que o assaltam. A terceira, a terceira, a terceira vez em que assaltam o leiteiro, e todo mundo fica esperando Jesus voltar, dando "Bom dia" uns aos outros, como se o fato nada configurasse. Enquanto isso, temos um fato concreto e policial: um leiteiro assaltado.