Loteria em Salvador

“Eu amo a rua”, escreveu João do Rio. Se ele precisasse andar diariamente em ruas de Cosme de Farias, bairro de Salvador, tenho certeza que ele nunca escreveria isso.

Uma conhecida aproveitou minha ida ao mercado para pedir que eu passasse na Casa Lotérica e fizesse uma aposta (com o dinheiro dela) na Mega-Sena. No caminho para o mercado e Lotérica, eu preciso passar por uma rua no bairro citado. Não sei quem foi o gênio que projetou aquela rua. As calçadas são mais estreitas que o normal. Ele, o urbanista, não pensou na coleta de lixo. Resultado: sacos de lixo se acumulam nas calçadas, impondo ao pedestre um dilema cruel: ou passar por dentro da imundície ou ir pela pista, onde passa carros e ônibus, e correr o risco de ser atropelado.

Quando chove, esse impasse, que o andante precisar enfrentar, deixa de existir. Todavia, o raro leitor não pense que isso é boa notícia: o dilema some porque a água da chuva espalha o lixo pela pista. Seja andando na calçada ou na via, temos que passar por cima do lixo.

Sempre me lembro da definição de “flanear”, citada em uma famosa crônica de João do Rio: “perambular com inteligência”. Eu me pergunto se os flanêurs de outrora eram menos habilidosos que os de hoje. Alguém pode objetar que os desafios impostos pelas ruas de cem anos atrás eram mais complicados, pois a urbanização não era tão sofisticada quanto hoje: nos dias atuais, a vida do pedestre está melhor. Faz algum sentido. Foi o próprio João do Rio quem disse, em outro texto: “hoje é melhor do que ontem e pior do que amanhã”. Mas a urbanização de hoje possui problemas que exigem uma habilidade singular dos pedestres.

Consigo chegar ao fim da rua. Sobrevivi. Porém, há outro desafio: as filas intermináveis da Casa Lotérica. Era um período em que pessoas costumavam pagar as contas do fim do mês. Até a fila reservada para apostar na Mega-Sena estava grande. Relembrei do conto “A Loteria em Babilônia”, de Jorge Luis Borges: na história, as loterias, em que os vencedores ganhavam moeda de prata, foram um fracasso. Não sei (ninguém sabe, na verdade) quem foi que as criou. Porém, se ele estivesse estabelecido suas criações aqui em Salvador (ou no resto do Brasil), e não na Babilônia, seria um sucesso. As pessoas daqui gostam de jogar. É a esperança de ficar milionário da noite para o dia. Aliás, o fracasso dessas loterias no conto de Borges estava relacionado ao fato de elas se dirigirem unicamente à esperança, e não “a todas as faculdades do homem”.

A fila anda devagarzinho. Atrás de mim, uma conversa edificante. Dois caras discutem métodos de depilação do traseiro. Estavam conversando em tom de brincadeira. Na minha frente, uma moça reclama da lentidão e olha para o relógio a cada cinco minutos:

- Desse jeito vou perder o almoço. - ela disse. Nunca é uma boa ideia ir para uma fila de lotérica na hora do almoço. Estávamos há uns vinte minutos na fila. Ela chegou um pouquinho antes de mim. Um homem à frente dela começou a explicar que a lentidão sempre acontece:

- Se você tem que ir ao médico logo depois de sair daqui, esqueça. Melhor você ir à clínica primeiro. Ou vai perder o seu compromisso.

Depois de 35 minutos, chegou a minha vez. Paguei as apostas da senhora e voltei para casa. No caminho, a rua. Não sei por quê, mas a volta parece ser mais longa do que a ida. Parece que os meus anseios, para chegar em casa logo, me fazem ter essa impressão.

Sobrevivi à rua e entreguei os comprovantes para a conhecida. Chego em casa. Deito na cama. Então, lembrei que tinha que almoçar. Só que não tem comida pronta, eu ia sair para comprar…

Esqueci de ir ao mercado!

Vou ter que passar pela rua de novo.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 24/02/2024
Reeditado em 24/02/2024
Código do texto: T8005683
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